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Coringa

Por Mario Abbade

O espírito do tempo

Muitos filmes que foram premiados com o Oscar e em festivais importantes pareciam essenciais na época em que foram lançados, mas com o tempo envelheceram mal - e alguns, com o passar dos anos, até passaram a ser vistos como equivocados. Já outros que não tiveram a mesma sorte nas premiações acabaram se tornando destaque para o propósito de se compreender a sociedade. É o caso, por exemplo, de “Taxi Driver” (1976), de Martin Scorsese, que saiu de mãos vazias do Oscar (apesar de ter recebido quatro indicações, entre elas a de melhor filme). E o que isso tem a ver com “Coringa”, de Todd Phillips? Tudo, já que é a partir do filme de Scorsese que Philips estrutura seu longa, só que com uma atualização da questão central: se antes o personagem problemático era um homem ferido emocionalmente pela Guerra do Vietnã, agora o debate aprofunda o tema, demonstrando que não é necessário um trauma no front, bastando, aos que já guardam dentro de si certas tendências, anos e anos de desprezo numa sociedade desigual e perversa.

 

Junto com esse tópico, vêm outras atualizações de temas tão contemporâneos como o bullying e a necessidade de se tornar uma celebridade - e aí Todd Phillips usa “O rei da comédia” (1982), outro filme de Scorsese, para debater o assunto. As influências cinematográficas são diversas, incluindo “Rede de intrigas”, “Laranja mecânica”, “O iluminado”, “Uma noite de crime”, “V de vingança” e até “Desejo de matar”, filme que serve para Philips apimentar o debate ao mudar o foco do sujeito de classe média alta matando bandidos para o pobre coitado ignorado que se vinga de empresários ricos que acham que estão acima da lei. Até a gestação de psicopatas como Charles Manson está na receita. Os fãs de Batman vão torcer o nariz pela forma como o sempre correto e honesto Thomas Wayne é retratado no longa: como se fosse Donald Trump.

 

Todas essas ideias são lançadas não como uma verdade absoluta autoritária, mas de forma a provocar reflexão. Todd Phillips quer fazer o público pensar, independentemente se o espectador concorda com ele ou não. Para isso, ele conta com uma interpretação arrebatadora de Joaquin Phoenix no papel do Coringa. Impressiona o físico esquálido e a fisionomia carregada de sofrimento de Phoenix, que recebe um reforço dramático da luz (cinza-esverdeada) e da forma sombria como Phillips captura cada gesto do ator.

 

Apesar de ser inspirado num personagem em quadrinhos e na graphic novel “Piada mortal", de Alan Moore e Brian Bolland, “Coringa” fala muito sobre a realidade atual. Algo que o diretor Christopher Nolan já tinha feito com seu Coringa (Heath Ledger fez o personagem) em “O cavaleiro das trevas”. Nesse ponto, os dois filmes dialogam de tal forma que o Coringa de Philips parece o filme-origem que resultou no de Nolan. Em evidência, um personagem sem esperanças, que vive numa sociedade com enorme desigualdade de renda que insiste em ignorar quem precisa de ajuda. E já se sabe qual é o resultado dessa equação.

 

Texto publicado no Globo em 1/10/2019

Coringa (Joker), de Todd Phillips (EUA/Canadá, 2019). Com Joaquin Phoenix, Robert De Niro, Zazie Beetz.

 

Drama. Sinopse: Baseado no personagem de mesmo nome da DC Comics, o filme é ambientado em 1981 e segue Arthur Fleck, um comediante de stand-up fracassado que é levado à loucura e se envolve em uma vida de crime e caos em Gotham City. 122 min. 16 anos.

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