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A arte de ser voyeur de si mesma

Por Octavio Caruso

É de conhecimento público que a escritora Marguerite Duras, na ocasião da primeira exibição de “Jeanne Dielman” (“Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles”) em Cannes, no ano de 1975, saiu, após a sessão, gritando a plenos pulmões que a personagem era louca, tentando usar sua respeitabilidade como ferramenta para diminuir o esforço da colega. A belga Chantal Akerman, sem perceber, havia confrontado a escritora com uma análise minimalista muito mais eficiente sobre a rotina diária do que o pretensioso “Nathalie Granger”, o tematicamente similar projeto cinematográfico de Duras, lançado alguns anos antes. Em seu rompante nada elegante, a autora acusou o golpe, a aula recebida.

 

O filme, protagonizado por Delphine Seyrig, hoje é reconhecido como uma grande obra-prima, peça fundamental no cinema experimental feminista. São duzentos minutos em que somos conduzidos pela câmera a encarar, em tempo real, as práticas mais banais de uma dona de casa, abusando de longas tomadas sem movimentação, no mesmo padrão de enquadramento, estabelecendo uma aura quase insuportável de monotonia. O título original, com o endereço completo, evidencia que seu ilusório/frágil conforto existencial está inexoravelmente conectado à sua rotina. Quando ela atende seus clientes sexuais vespertinos, a câmera se mantém abaixo do pescoço, cortando o rosto, simbolizando a negação da lógica/raciocínio, além da ausência de emoção/afeto, sublinhando a imperturbável frieza com que conduz os estranhos para o seu quarto.

 

A direção faz o espectador sentir a contundência de um único e moroso minuto na vida daquela mulher, como que o incitando a se desconectar daquela experiência audiovisual, apenas para que, nesse ato inconsciente, ele perceba então que faz parte intrínseca da crítica comportamental que ela propõe. Ao inevitavelmente frustrar o público, forçando cada sequência no limite do tédio absoluto, nós sentimos a mesma frustração de Jeanne com a vida que está levando. Já no segundo dia, sutis modificações em suas atitudes, como uma luz que é esquecida acesa em um ambiente vazio, demonstram que a estrutura psicológica está ruindo. No desfecho, a sensação de nojo com um dos clientes, o elemento desconhecido e amedrontador, faz com que ela tome uma atitude radical, violenta e intempestiva, algo totalmente novo para alguém que já havia se acostumado à indiferença como forma de proteção.

 

Os rituais excessivamente metódicos da personagem, aquela espécie de coreografia diária em sua “casa prisão”, foram levemente inspirados nos hábitos de sua mãe, Natalia Akerman, uma sobrevivente de Auschwitz, que a cineasta homenageou no belo “Não é um filme caseiro” (“No home movie”), seu último projeto, lançado em 2015. Numa triste ironia, a última expressão de sua arte é um reencontro afetivo com a figura que motivou o seu despertar criativo, um ciclo que se fecha. O documentário reforça a identidade visual da diretora, com raras cenas externas, foco no leitmotiv do espaço restringido por portas e janelas, que atuam como molduras, amenizando sempre a característica naturalmente intrusiva da câmera. O registro, despido de qualquer emoção, se mantém por minutos perturbadores encarando o vazio, essa facilidade de se distanciar e ser voyeur de si mesma, uma habilidade que se encaixou perfeitamente em “A prisioneira” (“La captive”), de 2000, a sua livre adaptação para a quinta obra de “Em busca do tempo perdido”, escrita por Marcel Proust. Da mesma maneira, Akerman exercitou essa habilidade no desfecho de “Eu tu ele ela” (“Je tu il elle), de 1974, seu primeiro trabalho de ficção, no qual, como atriz, protagonizou uma longa e intensa cena de sexo lésbico, uma corajosa afirmação profissional e, acima de tudo, pessoal.

 

Vale destacar a importância dada em seu conjunto de obra ao silêncio, um recurso que em seus filmes aprisiona o espectador, fazendo com que ele esqueça a câmera, incitando tremenda cumplicidade, já que ficamos conhecendo as arestas das personalidades mostradas, os espaços mortos entre as ações, o material humano normalmente desprezado em narrativas convencionais. Chantal transforma o ordinário em essencial. Até mesmo quando inserida em um projeto mais tradicional, como “Um divã em Nova York” (“Un divan à New York”), de 1996, ela não se rende aos clichês, operando nos diálogos que beiram o nonsense satírico, uma crítica ao formato padronizado das comédias românticas hollywoodianas. Há uma recusa rígida em satisfazer o público com personagens unidimensionais, com identidades/motivações simplórias. Jeanne é uma dona de casa, uma mãe que se prostitui, e, quando achamos que a conhecemos, ela se mostra uma assassina.

 

Exatamente por esse diferencial, como feminista, trabalhando com uma equipe técnica em que mulheres ocupam posições usualmente defendidas por homens, Chantal fez questão de explorar as diversas possibilidades, as variadas facetas da mulher na sociedade. Uma cineasta provocadora em uma indústria que parece, cada vez mais, primar pelo conformismo.

 

Filmografia (longas-metragens)

1972 – Hôtel Monterey

1974 – Je Tu Il Elle

1975 - Jeanne Dielman, 23, quai du Commerce, 1080 Bruxelles

1977 – News from home

1978 – Les Rendez-vous d’Anna

1982 – Tout une nuit

1983 – Les années 80

1983 - Um jour Pina a demandé...

1983 - L'homme à la valise

1986 - Seven Women, Seven Sins (segmento "Portrait d'une Paresseuse")

1986 – Golden Eighties

1986 – Letters Home

1989 - Histoires d'Amérique

1991 - Nuit et Jour

1991 - Contre l'oubli (segmento "Pour Febe Elisabeth Velasquez, El Salvador")

1993 - D'Est

1996 – Un divan à New York

1999 – Sud

2000 – La Captive

2002 - De l'autre Côté

2004 - Demain on déménage

2006 - Là-bas

2007 – L’etát du monde (segmento "Tombée de nuit sur Shanghai")

2009 - À l'Est avec Sonia Wieder-Atherton

2011 – La Folie Almayer

2015 – No Home Movie

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