Árido Movie, de Lírio Ferreira (Brasil)
Por Carlos Alberto Mattos
Entre a água abundante que a câmera sobrevoa na abertura e a caatinga esturricada que veremos logos depois, Árido Movie (2005) é um filme que se constrói numa estranha relação com certos mitos do cinema brasileiro. Antes de mais nada, a obra de Glauber Rocha, mito fundador do nosso cinema moderno. O sertão não virou mar e as utopias de fartura e saciedade continuam à mercê de místicos, adivinhadores de água etc. Também a prostituição e extinção progressiva dos índios e caboclos são tematizadas, assim como a permanência de um agreste arcaico, fincado em rituais familiares e vinganças de sangue.
Na paisagem desse Nordeste de entranhas expostas ao sol, podem-se ler todas as idades da Terra: a era das promessas bíblicas de paraíso, o tempo dos homens morrendo por sede ou por ódio, a idade da apropriação das fábulas populares por uma cultura urbana que usa o pretexto de "compreender os discursos" para matar sua fome de novidades.
O personagem-guia dessa "viagem" em muitos sentidos é um fantasma. Não é à-toa que está fora de foco em suas primeiras aparições. O homem do tempo subitamente se vê como homem fora do tempo, aquele onipresente via TV mas ausente das relações sociais que o forjaram. Os ecos de O Estrangeiro, de Camus, vão bem além da mera citação. Jonas não chora no funeral do pai Lázaro, estrangeiro que é em sua própria família. Seu vazio interior vai conduzi-lo à alienação de si mesmo, a ponto de no final tornar-se ele próprio o olho da câmera. Um fantasma subjetivo.
Em certa medida, Árido Movie também é um corpo estranho. Pertence à linhagem do Cinema Novo, mas conversa com ele como se fosse um parente que não vê há muitos anos. Sente-se ainda menos à vontade no meio do cinema de consumo imediato que hoje tenta se firmar no Brasil. Assume uma curiosa e divertida "irresponsabilidade" social e comercial, enquanto procura identidade no espelho da crítica cultural, quase tocando a auto-ironia.
Que esse filme-fantasma não resulte vazio é uma façanha a reconhecer. Bem ao contrário, é obra densa de significados, ressonâncias e subtextos. Pode ser apreciada tanto por seus sentidos subterrâneos, como pela sua superfície lustrosa: os tipos humanos bem delineados e interpretados, a fotografia espetacular de Murilo Salles, o suave absurdo que a tudo envolve. Até a busca obsessiva de uma simultaneidade permanente entre os vários eixos da ação parece sublinhar o caráter alucinatório da realidade a partir de qualquer minúscula variação da nossa forma de olhar.