A Caça (Jagten), de Thomas Vinterberg (Dinamarca)
Por Marcelo Janot
Quando misturado com a ignorância, o sentimento de irracionalidade por parte da
população pode ter consequências explosivas e trágicas em eventos envolvendo supostos
atos criminosos. Com a razão deixada de lado, a percepção da realidade se deforma e o
desejo de justiça sucumbe à ansiedade pela resolução imediata dos problemas. Isso vale
para os Estados Unidos, para o Brasil (lembram do caso da Escola Base?) ou para uma cidade
do interior da Dinamarca, onde se passa a ação do filme de Thomas Vinterberg.
O cinema já contou inúmeras histórias sobre linchamentos públicos e injustiças cometidas
contra personagens inocentes. Também já vimos se tornar clichê o recurso cinematográfico
que consiste em deixar o espectador em dúvida sobre a inocência do acusado, plantando no
roteiro situações em que ele apresente um comportamento dúbio. Vinterberg escapa dessa
armadilha deixando claro desde o início que Lucas é inocente da acusação de pedofilia. Com
isso, a adesão do espectador ao ponto de vista do personagem passa a ser muito mais direta
e envolvente. Podem inclusive surgir questionamentos sobre a sua passividade ao sofrer
acusação tão grave – sua reação talvez fosse outra se pertencesse a uma cultura diferente
da nórdica.
Mas a passividade é a marca registrada do personagem, um sujeito solitário e
emocionalmente debilitado pela relação distante com o único filho. Exemplo claro disso é o
início de seu relacionamento amoroso com uma funcionária da creche. Desde o primeiro
beijo até a primeira transa, é sempre ela quem toma a iniciativa. O desempenho do ator
Mads Mikkelsen é tão bom que não é difícil perceber o desespero interior de Lucas, que só
dá lugar à explosão temperamental quando até a namorada, a única pessoa em quem ele
aparentemente poderia confiar, coloca em xeque sua inocência.
Logo o coquetel de irracionalidade com ignorância passa a inebriar a população local, e
pouco importa se não há provas: ele já está julgado e condenado informalmente pela
simples possibilidade de cometer tamanha atrocidade, e nem os comerciantes locais o
querem mais fazendo compras em seus estabelecimentos.
O diretor dinamarquês Thomas Vinterberg foi um dos signatários do manifesto Dogma 95 e
se destacou com o brilhante Festa de Família (1998), cuja história envolvia a revelação de
atos de pedofilia cometidos pelo patriarca. Ao voltar ao tema mais de uma década depois,
apesar de todo o sentimento de indignação que ambos os filmes despertam, o diretor agora
parece mais otimista. Otimista no sentido de que o filme deixa claro, após a elipse temporal
no último ato, que há esperança na força do sentimento de arrependimento e da retomada
dos laços de amizade. Por outro lado, não estamos diante de uma mera fábula moral que vai
do inferno ao paraíso, e a ambiguidade da cena final coroa com maestria este drama
realista, deixando claro que, enquanto a ignorância e a paranoia tomarem conta da razão,
será impossível vivermos num mundo mais justo.
Jagten – Dinamarca, 2012 - Direção: Thomas Vinterberg – Roteiro: Thomas Vinterberg, Tobias Lindholm –
Produção: Morten Kaufmann, Sisse Graum Jørgensen, Thomas Vinterberg – Fotografia: Charlotte Bruus
Christensen – Montagem: Janus Billeskov Jansen, Anne Østerud – Elenco: Mads Mikkelsen, Thomas Bo Larsen,
Alexandra Rapaport, Annika Wedderkopp, Lasse Fogelstrøm – Duração: 115 minutos.