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César Deve Morrer (Cesare Deve Morire), de Paolo Taviani e Vittorio Taviani (Itália)

Por Daniel Schenker

A vida como matéria-prima da arte

 

Paolo e Vittorio Taviani mostram, em César Deve Morrer, como presos da penitenciária de segurança máxima de Rebibbia, em Roma, se apropriam dos personagens de Júlio César, tragédia de William Shakespeare. À medida que ensaiam, os presos/atores fazem conexões entre as suas vidas e as circunstâncias da peça. “Parece que Shakespeare viveu na minha cidade”, observa um deles. Ao se lembrar de experiências pessoais a partir das situações deflagradas no texto teatral, outro integrante do elenco conclui: “as palavras eram diferentes, mas iguais”.

 

Os presos/atores falam sobre as suas realidades por meio do original de Shakespeare. Criam, assim, uma espessura entre o texto da peça, aquele que será escutado pelos espectadores no momento da apresentação, e o próprio de cada um. Este segundo texto, referente às associações traçadas a partir de vivências particulares, permanece subterrâneo, inacessível ao público. Mas seu “conteúdo” reverbera no primeiro texto, possibilitando que este seja dito de modo crível, concreto, palpável.

 

Em certo instante do filme (vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim de 2012), um preso/ator interrompe o texto e expressa algo reprimido há muito tempo. Este atravessamento entre o plano ficcional e a esfera íntima remete à operação presente em outro filme também norteado por uma peça de Shakespeare: O Rei Está Vivo (2000), de Kristian Levring, no qual um grupo de turistas, perdido no deserto africano, passa a ensaiar Rei Lear, enquanto aguarda resgate. Na história do dramaturgo, o monarca vai sendo destituído de seu reino numa jornada de despojamento que pode ser facilmente relacionada à via-crúcis dos turistas, levados a se despirem de suas vaidades em prol da sobrevivência.

 

Em César deve Morrer, a utilização da vida como matéria-prima do trabalho torna cada interpretação específica. Afasta o desempenho do clichê, a julgar pelo teste feito com os presos no início do filme com o intuito de selecionar os encarregados dos personagens mais relevantes na encenação de Júlio César. No teste, os presos são incumbidos de fornecer dados pessoais com emoção e depois com raiva, tarefa que realizam evidenciando estereótipos.

 

O filme Cidade dos Sonhos (2001), de David Lynch, conta com outra cena de teste que sinaliza a transição do postiço para o verdadeiro: numa passagem, Betty Elms começa a dizer o texto convencionalmente. Entretanto, ao aceitar a proximidade física com seu parceiro de cena, Woody Katz, alcança inegável verdade interpretativa, substituindo um artificial tom contundente pelo sussurro. O conselho que recebe do diretor, Bob Brooker, é digno de nota: “não finja que é verdade até se tornar verdade”.

 

Com César deve Morrer, os Irmãos Taviani se voltam para o teatro, valendo-se de uma estrutura simples, a exemplo da demarcação entre cor – nas sequências de apresentação do espetáculo – e preto e branco – opção imperante em boa parte do filme, centrada nos ensaios – para suscitar reflexão sobre questões de ponta acerca do trabalho do ator e, mais ainda, sobre a dimensão da arte como força libertadora. “Desde que conheci a arte, esta cela se tornou uma prisão”, exclama um dos presos/atores.

 

Cesare Deve Morire – Itália, 2012 - Direção: Paolo Taviani, Vittorio Taviani – Roteiro: Paolo Taviani, William Shakespeare – Produção: Grazia Volpi - Fotografia: Simone Zampagni – Montagem: Roberto Perpignani – Elenco: Cosimo Rega, Salvatore Striano, Giovani Arcuri, Antonio Frasca, Juan Dario Bonetti, Rosario Majorana, Vincenzo Gallo – Duração: 76 minutos.

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