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Cidade Baixa, de Sergio Machado (Brasil) 

Por Marcelo Moutinho

Uma briga de galos - um branco, outro negro - funciona, logo no início da projeção, como uma espécie de prelúdio da história que será narrada emCidade Baixa (2005). Captado pela câmera frenética de Sérgio Machado, o sangrento embate entre os dois animais na rinha antecipa, de forma metafórica, o que veremos a seguir: o crescente conflito entre Naldinho (Wagner Moura) e Deco (Lázaro Ramos), dois amigos de longa data, a partir do momento em que conhecem a prostituta Karina (Alice Braga) e são por ela enredados numa relação triangular e inter-racial.

Força-motriz de clássicos como Jules e Jim (François Truffaut), o hoje desgastado tema do trígono amoroso ganha, em Cidade Baixa, novos tons. Sob o signo do realismo extremado, o filme desnuda uma Salvador léguas distante da que fulgura nos cartões postais e que, por inversão, alude à dicotomia sugerida já no título. A cidade baixa é aquela que viceja no subterrâneo, que arde nos intestinos da paisagem idílica, com regras próprias e uma lei suprema: o importante é sobreviver.

Nesse purgatório sem promessa de paraíso, Naldinho, Deco e Karina entrelaçam seus caminhos. A imagem granulada e o ritmo nervoso da montagem exacerbam a progressiva tensão que corrói os três personagens, cindidos entre a atração e a repulsa mútua, numa relação que parece inexoravelmente destinada a desfecho trágico. Um dos muitos méritos de Cidade Baixa, aliás, é suscitar tal sensação com sutileza, abdicando de recorrer ao fácil expediente da "fala". Pois se os diálogos exprimem o esfarelamento da cumplicidade dos dois amigos à medida que Karina se imiscui entre eles, é nos silêncios, nos relances sensuais dos corpos, na expressividade per se dos olhares que o drama efetivamente se estabelece.

O filme, portanto, não se sustentaria caso o entrosamento entre os atores fosse construído sobre bases frouxas - o que felizmente não ocorre. Pelo contrário: as atuações de Wagner Moura, Lázaro Ramos e Alice Braga são viscerais e orgânicas, exprimindo com as nuances possíveis o amálgama de paixão, tesão, ciúmes, raiva, culpa e desejo que sedimenta cada um dos personagens e rege suas contendas. Tais sentimentos estarão potencializados na belíssima seqüência final, quando a abissal angústia que nasceu e alimentou-se da impossibilidade, da interdição, transfigura-se nas lágrimas que percorrem o rosto de Karina e no sangue diluído que desce pela pia. No pequeno quarto do apartamento há, então, apenas os três. E seus corações, como um dia escreveu Ferreira Gullar, "pulsam como um relógio num tic tac que não se ouve".

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