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Cinema, Aspirinas e Urubus, de Marcelo Gomes (Brasil) 

Por Nelson Hoineff

Há uma crise entre o cinema brasileiro e o Brasil. Ela se manifesta principalmente na maneira pitoresca como um vê o outro. Se por um lado as comédias ligeiras de inspiração televisiva ignoram possibilidades mínimas de manifestação de pensamento, por outro há um modelo de cinema que foca na sociedade e passa ao largo do ser humano.  Sob esse prisma, o brasileiro pode ser a representação de individualidades mas nunca um indivíduo. Ele é a peça necessária a uma engrenagem que adquire muitas formas, mas incapaz de expressar sentimentos individuais. Num caso e no outro, é vedado ao homem ultrapassar a caricatura do personagem que o cinema lhe destina.

A luta pela hegemonia de modelos de produção amplifica e torna mais dramática essa crise. Introduz a reverência à ditadura do gosto médio, empurra a criação cinematográfica para o precipício da mediocridade, inverte valores, sugere a gerações inteiras que o cinema é tão melhor, tão mais viável, tão mais honesto quanto mais se parecer com o ultrajante espetáculo televisivo que diariamente é empurrado para o estômago do espectador brasileiro.

Neste sentido, Cinema, Aspirinas e Urubus (2005) é praticamente uma celebração das possibilidades do ser humano. Mais do que isso: é um filme capaz de rejeitar a subserviência a qualquer modelo de ocasião, de escolher o seu próprio tom, de optar pelo olhar generoso a seus personagens. A maneira minimalista que o diretor Marcelo Gomes elege para narrar a saga de dois homens no sertão nordestino confunde-se com o modo que esses homens tem de enxergar o que passa à sua frente. Um quer escapar da guerra, outro fugir da seca. Chegaram à serenidade que lhes permite olhar sem se espantar, ouvir sem se ofender. Sua interminável viagem é um permanente aprendizado. São personagens extraordinariamente complexos depurados por um trabalho meticuloso, detalhista, aparentemente incansável de elaboração.

Personagens que ganham vida com dois atores impecáveis - Peter Ketnath e João Miguel - e foco com um impressionante elenco de atores locais que conseguem, como propõe Marcelo, imprimir ao filme uma necessária verdade factual e documental. Também nisso Cinema, Aspirinas e Urubus se aproxima do cinema-novo, de onde consegue extrair e recontextualizar elementos que outros filmes tentaram sem sucesso.  

Entre tais elementos está a fotografia de Mauro Pinheiro Junior, sem a qual seria difícil imaginar o filme com esse resultado. Nada em Cinema, Aspirinas e Urubus acontece por acaso - da sua refinadíssima elaboração até os detalhes técnicos que possam passar desapercebidos a muitas platéias. Este é verdadeiramente um filme de exceção - exceção ao olhar  que o cinema brasileiro tem lançado sobre a sociedade, exceção aos mecanismos hegemônicos de produção no país.

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