Contra Todos, de Roberto Moreira (Brasil)
Por Carlos Alberto Mattos
"O real em estado bruto não produzirá sozinho o verdadeiro", disse Robert Bresson numa de suas "Notas sobre o Cinematógrafo". Ou seja, para que algo de verdadeiro surja diante do espectador, é preciso matar e ressuscitar o filme diversas vezes: "Meu filme nasce uma primeira vez na minha cabeça, morre no papel; é ressuscitado pelas pessoas vivas e os objetos reais que eu utilizo, que são mortos na película, mas que, colocados numa certa ordem e projetados sobre uma tela, se reanimam como flores na água". (Tradução inédita de Evaldo Mocarzel).
Não é difícil reconhecer as lições de Bresson num filme, afinal, tão pouco bressoniano como Contra Todos (2004). O primeiro longa de Roberto Moreira é áspero, rude e tenso como um documentário bruto. Mas a impressão de verossimilhança que emana de suas imagens e sons é resultado de um longo processo onde intervieram não só o diretor-roteirista, mas os atores com sua vivência, o cinegrafista com sua sensibilidade, a montadora com seu senso de medida e propulsão etc. Espontaneidade e improvisação não renderiam tanto se não estivessem embasados numa cuidadosa elaboração de significados e numa pesquisa dramatúrgica que não se intimidou com a distância social entre o laboratório de roteiro da ECA-USP e a periferia da Zona Leste paulista.
Como a obra de Nelson Rodrigues, Contra Todosnão almeja um simples decalque da realidade suburbana. O mote "a vida como ela é" adquire no filme um sentido essencialista, onde o excesso, a tragédia e o patético querem desvelar uma dimensão mais profunda e concentrada da realidade, normalmente inacessível à crônica "realista". Seria mais adequado falar de "a vida como ela, no fundo, é".
Com sua dupla (e até tripla) agenda, os personagens de Moreira vivem uma tragédia contemporânea alicerçada sobre o trinômio ambição-perversão-conversão, típico das contradições de uma sociedade que se quer hedonista e puritana ao mesmo tempo. A hipocrisia, que, na ideologia dos anos 1960, era identificada como vício burguês na arena da luta de classes, agora é uma fissura de caráter que habita também a baixa classe média, com seus sonhos de ascensão, seus projetos de contrição espiritual e sua rendição ao caldo de violência que, no fim das contas, atinge todas as camadas sociais. Waldomiro, o amigo devorador, já comparado ao shakespeareano Iago de "Otelo", apenas concentra as dualidades distribuídas entre os outros personagens, semeando a suspeita e deixando-a cumprir seu papel de máquina trituradora.
Cru e cruento, Contra Todos é também crucial para o momento que vive o cinema brasileiro. Enquanto o formato sitcom alimenta a proto-indústria e o chamado filme de invenção refugia-se em nichos laterais - quando não em meros ecos de um passado -, o modelo de baixo orçamento e alta criação exercitado por Roberto Moreira aponta uma via intermediária, viável e estimulante. Nem a pseudo-Hollywood global, nem a miséria artística como meta. Contra Todos é um filme a favor do cinema como empreendimento de idéias.