top of page

As Boas Maneiras

Por Daniel Schenker

Sem a etiqueta do cinema convencional

“As boas maneiras” é um filme dividido em duas partes bem marcadas: a primeira apresenta a interação entre Ana (Marjorie Estiano), abandonada pela família ao ter o noivado rompido após engravidar de outro homem, e Clara (Isabél Zuaa), contratada para trabalhar na casa de Ana e cuidar do bebê depois do parto; a segunda mostra o desdobramento da relação entre Clara e o filho de Ana, Joel (Miguel Lobo).

 

Também há dois mundos nesse filme de Juliana Rojas e Marco Dutra: o dos prédios empresariais e shoppings luxuosos; e o das moradias de espaço reduzido, acessadas por ladeiras íngremes e escadas estreitas, da periferia. Paisagens distantes de uma única cidade – São Paulo –, abordada de maneira realista e, ao mesmo tempo, estilizada, contraste que evoca, ao longe, o cinema de Carlos Reichenbach. Existe ainda um terceiro mundo, mencionado na primeira parte do filme e estampado na decoração kitsch do apartamento de Ana, onde impera a cor azul – o de um abastado interior do Brasil, origem de Ana, que, em certos instantes, traz à tona flashes da vida na fazenda. Os universos variados dos personagens são potencializados pela fotografia de Rui Poças e pela direção de arte de Fernando Zuccolotto.

 

A impressão de que há mais de um filme em “As boas maneiras” aumenta diante da percepção de que Rojas e Dutra, responsáveis pelo roteiro, transitam por gêneros diversos. Os diretores voltam a manifestar especial interesse pelo terror, apressadamente considerado como escapista, mas conjugado aqui (e em tantas produções) com um contexto socioeconômico. O sangue que escorre no decorrer da projeção expressa intimidade, doação, sacrifício e morte. Em todo caso, o macabro surge entrelaçado a influências inesperadas, como o musical – central, aliás, em “Sinfonia da necrópole” (2014), de Rojas.

 

Em “As boas maneiras”, há poucas, mas importantes sequências em que os personagens cantam. A introdução desse procedimento se dá justamente na passagem da primeira para a segunda parte do filme, quando Clara caminha com o recém-nascido Joel da São Paulo endinheirada para a periférica – antes, apenas Cida Moreira, que interpreta Amélia, vizinha que aluga a casa para Clara, aparece cantando, numa cena breve. As letras das canções informam sobre o momento que os personagens estão atravessando. Contudo, a inclusão inusitada do canto faz com que o resultado não se torne meramente reiterativo.

 

Quando Ana revela seu passado para Clara, os diretores se valem do recurso do desenho, que, juntamente com o musical e o olhar estilizado lançado sobre a cidade, relativiza o registro realista do filme, sem, porém, anulá-lo. Como se pode notar, Juliana Rojas e Marco Dutra não seguem a etiqueta do cinema convencional. Ao contrário, surpreendem o espectador, evidenciando domínio na condução imprevisível da história, auxiliados pelo elenco afiado.

As boas maneiras, de Marco Dutra, Juliana Rojas (Brasil/ França/Alemanha, 2017). Com Isabél Zuaa, Marjorie Estiano, Miguel Lobo.

 

Fantasia/Horror/Musical. Sinopse: Ana contrata Clara, uma solitária enfermeira moradora da periferia de São Paulo, para ser babá de seu filho ainda não nascido. Conforme a gravidez vai avançando, Ana começa a apresentar comportamentos cada vez mais estranhos. 135 minutos. 14 anos.

6-As-Boas-Maneiras.jpg

© 1984 - 2025 Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro

bottom of page