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Aquarius, de Kleber Mendonça Filho (Brasil / França)

Por Leonardo Luiz Ferreira

Gestos e afetos

Não sabes, Clara, que pena
eu teria se — morena
tu fosses em vez de clara!
Talvez… quem sabe… não digo…
mas refletindo comigo
talvez nem tanto te amara! (Casimiro de Abreu)

“Aquarius”, o segundo longa-metragem de ficção de Kleber Mendonça Filho, é uma jornada íntima de personagem que poucas vezes foi vista na cinematografia brasileira. É um filme de/para e, sobretudo, com Sonia Braga, que domina cada sequência a ponto de ofuscar todos que dividem o quadro em sua presença. Ela é uma força da natureza que transforma uma crônica social em um libelo político e pungente na tela.

 

Mas o filme não é só a interpretação de uma atriz em estado de graça, como é também a junção de todo um percurso do trabalho do crítico, programador e cineasta Kleber Mendonça, que de uma carreira premiada em curtas-metragens passa a traçar um caminho sem volta para a ficção com “O som ao redor”. “Aquarius” é o complemento perfeito de um projeto de cinema e autoria que traz em sua estética clássica e na aproximação com o gênero a potência para se estabelecer de maneira frontal e indelével na contemporaneidade.

 

A mise-en-scène se articula em fluxo em cada parte do quadro, converge e reflete o estado de espírito da personagem principal. E dois elementos são ressaltados: o uso inteligente da trilha sonora diegética e a não diegética (fora do quadro), que compõem a personagem e sua emoção, além da criação da atmosfera de incômodo gradual; e a utilização dos flashbacks entre o gracejo da cômoda e suas histórias eróticas até a pesadelos dúbios sobre a realidade.

 

Kleber parte do microcosmo de um prédio e de uma cidade (Recife) para refletir sobre o Brasil: o coronelismo, o poder, o racismo, a corrupção, entre outros temas. Aquarius é um filme de alta tensão social, que é registrado através de diálogos incômodos que tocam sutilmente em questões fulcrais brasileiras que estão presentes no dia a dia de cada um, mas que jogadas no microscópio da lente cinematográfica ganham um novo peso e sentido. O grande mérito da obra está em mergulhar de braços abertos nessa personagem, Clara, escritora e ex-crítica musical, e através dela narrar os pequenos horrores que vitimam silenciosamente os cidadãos.

 

A ferida de Clara é tanto uma cicatriz da cirurgia da mama quanto a mental e psíquica da perda de entes queridos ou da nostalgia de um mundo que não existe mais. É nesse momento que há a aproximação com o melodrama e a ligação com os objetos: cada vinil, joia e foto remetem a uma lembrança, um momento perdido no espaço. Por mais que o discurso do novo seja propagar a cultura da violência e assim as empreiteiras e empresas de segurança lucrem, e que o cupim metaforicamente devore de maneira vagarosa as entranhas e exponha o decadentismo da sociedade, há sempre um momento de esperança e desafogo em uma dança de gestos e afetos. Clara vive e resiste...

Aquarius - (Brasil, 2016), de Kleber Mendonça Filho. Com Sonia Braga, Buda Lira, Fernando Teixeira, Humberto Carrão, Irandhir Santos, Maeve Jinkings.

Drama. Sinopse: Clara (Sonia Braga) tem 65 anos, é jornalista aposentada, viúva e mãe de três adultos. Ela mora em um apartamento localizado na Av. Boa Viagem, no Recife, onde criou seus filhos e viveu boa parte de sua vida. Interessada em construir um novo prédio no espaço, os responsáveis por uma construtora conseguiram adquirir quase todos os apartamentos do prédio, menos o dela. Por mais que tenha deixado bem claro que não pretende vendê-lo, Clara sofre todo tipo de assédio e ameaça para que mude de ideia. 145 min. 16 anos.

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