Em chamas
Por Carlos Brito
Romance, abismos sociais e um exercício extremo de tensão
Há uma tensão permanente em todos os instantes de “Em chamas”, do realizador sul-coreano Lee Chang-dong. Cada fotograma, cada ângulo, cada composição, cada exploração do abismo social e econômico que separa os personagens e cada expressão dos atores entregam a sensação de que, bem antes de a trama alcançar o clímax, algo muito grave e explosivo vai acontecer.
Esse estado agônico, nervoso e de profundo desconforto irá se estender pelas quase duas horas e meia de exibição do filme – e o principal portador dessas emoções será o jovem Lee Jong-su (Ah-in You).
Há pouco egresso da faculdade, com pretensões de se tornar um escritor, mas incapaz de uma conexão com a vida para desenvolver seu talento, ele tem um emprego de meio expediente como entregador. Um dia, durante o trabalho, encontra a jovem Shin Hae-mi (Jong-seo Jun). Ela garante que ambos se conheceram na escola, muito embora ele mesmo não mantenha recordações disso. Por ambos estarem perdidos no mundo, não demora para que se envolvam.
Hae-mi, no entanto, tem uma viagem marcada para a África. Ao retornar, ela está acompanhada de Ben (Steven Yeun), personagem misterioso que colocará as engrenagens da trama em andamento definitivo. De personalidade opaca, ele é, em tudo, o oposto de Lee Jong-su: rico, confiante e dono de um inabalável pragmatismo envolto em atitude blasé.
Os três formarão um triângulo incomum cuja existência terá seu momento agudo em um encontro na casa do protagonista, próximo à fronteira da Coreia do Norte. Neste ponto, ocorrem duas situações excepcionais a serem registradas:
- Uma das mais belas cenas do cinema recente, com Hae-mi dançando seminua durante o crepúsculo ao som de “Génerique”, de Miles Davis, peça da trilha de “Ascensor para o cadafalso”, de Louis Malle;
- A confissão feita por Ben a Lee Jong-su, com absolutas naturalidade e flexibilidade moral, de que mantém um hábito bastante incomum para se sentir vivo. Logo em seguida, uma das pontas do triângulo desaparecerá.
É a partir daqui que o até então drama psicológico/comportamental assumirá desesperadores contornos de suspense slow burn, com Lee Jong-su iniciando uma busca obsessiva, ao mesmo tempo em que começará a desconfiar de aspectos sombrios da natureza de um dos outros personagens. A trama encontrará seu ponto culminante na catártica e devastadora sequência final.
Aliada à herança das explosões emocionais de seu pai, mostrada em narrativa paralela reduzida, mas importantíssima, essa busca será fundamental para a compreensão da narrativa e também da própria razão de ser do protagonista.
Baseado no conto “Queimar celeiros”, de Haruki Murakami, que por sua vez empresta o título de texto de William Faulkner, escritor favorito do protagonista do filme, “Em chamas” – vencedor do prêmio da crítica na edição 2018 do Festival de Cannes - é um exercício agudo de descoberta pessoal, de exploração de diferenças sociais e de tensão, tudo elevado a grau máximo.
Em chamas (Beoning), de Lee Chang-dong (Coreia do Sul, 2017). Com Ah-in You, Steven Yeun, Jong-seo Jun.
Drama/Mistério. Sinopse: Num dia normal de trabalho como entregador, Jong-soo reencontra Hae-mi, uma antiga amiga que vivia no mesmo bairro que ele. A jovem está com uma viagem marcada para o exterior e pede para Jong-soo cuidar de seu gato de estimação enquanto ela está longe. Hae-mi volta para casa na companhia de Ben, um jovem misterioso que conheceu na África. No entanto, o forasteiro tem um hobby peculiar, que está prestes a ser revelado aos amigos. 148 minutos. 16 anos.