Logan
Por Rodrigo Fonseca
Um metacinema em fase de mutação
Ilíada de um tempo em crise com o conceito clássico de heroísmo, a franquia “X-Men” e seus derivados – “Wolverine” é o mais famoso deles, estrelado por um Ulisses trágico – são rebentos do que se poderia entender como o legado nº 1 da cultura digital para a dramaturgia audiovisual: o conceito de metacinema. Filhos do Átomo, os discípulos de Charles Xavier, criados nas HQs por Stan Lee em 1963, tornaram-se cinema como Filhos da Geração DVD. A partir do final dos anos 1990, quando a tecnologia informática permitiu o advento das bolachinhas chamadas de Digital Versatile Disc, toda a memória fílmica produzida no mundo, até aquele momento, encontrou um escoamento (e um veio de preservação) biblioteconômico, que nos permitiu não apenas acesso a cópias de uma comédia de Harold Lloyd (1893-1971) feita em 1919, mas também a toda uma fortuna crítica sobre ela: os chamado extras.
Diferentemente do que se viveu na era VHS, todo DVD era um casamento de entretenimento com aula de história, o que alfabetizou uma nova linhagem de cinéfilos e reeducou o olhar dos mais velhos, criando, em ambos, uma percepção de que a realidade – do presente e do passado, sobretudo – é mediatizada, ou seja, existe o passado real, concreto, e existe o passado que o cinema nos ensinou. Nossa ideia da Chicago dos gângsteres não é a Chicago dos documentos, calcada em fatos: nossa Chicago é a de Brian De Palma em “Os intocáveis”. Ou seja... verdade dá lugar a simulacros. E simulacros produzem simulações da vida, uma metavida, em que imagem não é só um corredor que nos leva a experiências sensíveis: imagem é a experiência em si. E “Logan” é uma delas. Das melhores.
O que a práxis do simulacro produziu foi um metacinema. Veja, por exemplo, o caso de alguns de seus maiores artesões. Pedro Almodóvar (“Fale com ela”) e Wong Kar-Wai (“Amor à flor da pele”) criaram com base em seu mergulho em mestres do cinema e do folhetim (Vincente Minelli e Douglas Sirk sobretudo) uma ideia de metamelodrama, ou seja, uma reflexão sobre os sofrimentos do querer calcados não em registros do real, mas em noções de amar, sofrer, perder e reconquistar que o cinema ensinou a eles. Embora não tenha – ainda – o peso destes cineastas, mas já tenha um lastro autoral com base na contínua discussão da farsa como prática de sobrevivência, o diretor James Mangold (de “CopLand”) fez da franquia baseada nas aventuras do mutante de guerras metálicas – “Wolverine – Imortal” (2013) e o brilhante “Logan” - a instância do meta: não o metaquadrinho, mas o metafilme. Por um bom tempo das quase 2h20 minutos de “Logan”, esquecemos estar diante de um filão consagrado: o “filme de super-herói”. Estamos, sim, num thriller sobre formação familiar, bem parecido com os que Sam Peckinpah fazia entre os anos 1960 e 70, sobretudo “Os implacáveis” (1972). A secura narrativa é a mesma, mantendo os pés fincados no realismo, com um ritmo de ação febril, sem abrir mão de sua amargura estrutural.
Orçado em US$ 97 milhões, “Logan” começou sua carreira pelo Festival de Berlim e foi a circuito com fome de fortunas, faturando US$ 616 milhões. Tem um tempero de “Stranger things” na fuga de Logan para proteger a menina Laura Kinney (Dafne Keen) da tropa dos carniceiros chefiados por Donald Pierce (Boyd Holbrook, de “Narcos”). Neste filmaço, reina a metalinguagem, usada por Mangold ao mostrar gibis na tela várias vezes, como um registro mítico de um herói que se esforçou para não deixar laços atrás de si. Mas estes laços, na trama, foram criados à força de seus feitos. E, na vida real, a mitologia é sequela da evolução (espantosa) de Jackman na pele deste semideus caído.
Logan (Logan, 2017). Direção: James Mangold. Elenco: Hugh Jackman, Patrick Stewart, Dafne Keen.
Ação, drama, ficção científica. Sinopse: Ambientado em 2029, o longa mostra Wolverine como motorista de limusine, envelhecido e tendo como refúgio uma casa no meio do deserto, onde vive com Professor Xavier e Caliban. Mas a rotina do mutante chega ao fim quando Gabriela lhe pede para proteger a pequena Laura / X-23. 137 minutos. 16 anos.