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Iniciativa Cinematográfica Cavideo

Por Francisco Russo

Como uma locadora se tornou um ícone cultural carioca

Carlos Vinícius Borges, mas você pode simplesmente chamá-lo de Cavi. Assim ficou conhecido ao longo das duas últimas décadas, muito graças ao trabalho feito na locadora e agora também produtora Cavídeo. Localizada na Cobal, a "Boca do Lixo carioca" logo se transformou em ícone cultural graças aos eventos realizados e à verdadeira cinemateca que, ano após ano, lá se formou. Não foi à toa que, ao completar 20 anos de existência, a Cavídeo foi homenageada pela ACCRJ.

 

Comecemos pela história clássica. Você era um lutador de judô e decidiu abrir uma locadora que, com o tempo, virou ícone no Rio de Janeiro. Como surgiu esta ideia?

Cavi Borges: Comecei a praticar judô aos três anos e tinha o sonho de ir às Olimpíadas. Em 1996, fui selecionado para ir à Olimpíada de Atlanta. Só que, às vésperas da viagem, eu quebrei a costela e não pude ir. Era o sonho da minha vida, fiquei bem triste e deprimido. Foi nesta época que tive a ideia de abrir uma locadora. Minha mãe tinha uma loja pequenininha, que estava disponível e eu queria usar. Alguém comentou comigo de fazer uma locadora de filme de luta, que não existia. O objetivo inicial era esse, não entendia nada de cinema! Resolvi abrir a loja, mas, como não tinha dinheiro para pagar um despachante, eu mesmo resolvi tirar a documentação e acabei levando um ano para fazer isso. Só que foi bom. Neste ano em que a locadora não abriu, mas estava em obra, as pessoas passavam lá e perguntavam se teria filme do Tarkovski, do Fellini, do Cassavetes... Nunca tinha ouvido falar, mas ia anotando. Como a Cobal é muito frequentada por artistas, percebi que havia este nicho de locadora de filme de arte e decidi investir nisto, mesmo sem entender muito do assunto. Fui pesquisando e aprendendo com os clientes mesmo.

 

Além de filmes de diretores consagrados, a Cavídeo tem por característica também disponibilizar filmes de diretores independentes, que os deixam na própria locadora. Como nasceu esta proposta?

CB: O Eduardo Valente fez um curta, "O Sol alaranjado", que ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes. Ele me pediu para deixar uma cópia em VHS na Cavídeo, para que todo mundo que quisesse pudesse vê-lo. Podia até ser de graça. Foi aí que veio a ideia, de convidar cineastas que tivessem filmes guardados para que deixassem uma cópia na Cavídeo. Seria um serviço extra. Comecei a estimular isso, buscando esse diferencial. Sempre procurei algo que fizesse da Cavídeo algo diferente das outras locadoras. Com o tempo, ela ganhou a fama de que tinha de tudo. Às vezes nem tinha, mas ter esta fama foi bom. Isto fez com que a Cavídeo crescesse muito e que pudesse ampliá-la, tornando-a também uma produtora, em 2005.

 

O mercado mudou muito desde que a Cavídeo foi criada, primeiro com a migração para DVD/Blu-Ray e agora com o streaming. Como foi lidar com estas mudanças em um cenário em que, hoje, as locadoras estão quase extintas?

CB: Durante muitos anos, a locadora sustentava a produtora. Agora, isso inverteu. Apesar de ainda termos bastante movimento, este público não é mais suficiente. Só que a produtora está indo muito bem, então, quando a locadora dá prejuízo, a gente cobre com dinheiro dela. Hoje, a locadora é algo muito afetivo. Não é nem um negócio mais, é um ponto de encontro, onde tudo começou. Então, independentemente de dar lucro ou não, ela sempre vai existir. Eu até brinco, dizendo que será a última locadora do mundo.

 

Indo nesta relação entre a distribuidora e a produtora, talvez a mescla mais explícita tenha sido na série "Mateus, o balconista" e no longa "Vida de balconista". Imagino que tenha tido muito material que você vivenciou na Cavídeo e que acabou inspirando ambos.

CB: Exatamente. A Cavídeo não tinha hora para fechar. Durante 18 anos ela nunca fechou, nem 1º de janeiro ou Natal. Apenas agora é que começou a fechar aos domingos, para reduzir custos. Ficávamos abertos até de madrugada e na Cobal tem muita gente que bebe, então aparecia muito maluco. Aconteciam coisas muito engraçadas, e eu ia anotando para que, um dia, fizesse um filme sobre isso.

A Rosane Svartman e a Clélia Bessa tinham este projeto pioneiro que era a primeira televisão celular do Brasil. Elas me convidaram para fazer episódios de ficção, topei e aproveitei estas histórias pré-escritas, chamando meus amigos da época para participar. Entre eles estavam Mateus Solano, Gregório Duvivier, Álamo Facó... Vários que hoje em dia estão bombando, mas na época estavam começando. Coloquei no YouTube e passou a ser muito visto e também vendido, no camelódromo. Acabamos fazendo seis temporadas, de 12 episódios cada, e um filme para fechar. Gravávamos todos os episódios em uma única noite, e o longa gravamos em 15 horas. Foi um projeto despretensioso, que nasceu na brincadeira e se tornou talvez o maior carro-chefe financeiro da produtora.

 

Pode-se dizer que "Riscado" (2010) seja um divisor de águas na sua carreira, pelas premiações que recebeu. Qual foi o impacto trazido pelo filme?

CB: "Riscado" teve muita importância porque, como fazemos filmes muito baratos, todo mundo começou a falar que nossos filmes eram ruins. De certa forma "Riscado" veio para mostrar que dava para fazer algo de qualidade, independentemente de quanto custasse. Ninguém imaginava que um filme de R$ 50 mil chegaria tão longe, especialmente os figurões que já estavam estabelecidos no mercado. Todo mundo achava que a gente fazia filme trash, e depois de "Riscado" a gente provou que era possível fazer filme bom a baixo custo. Isso nos abriu muitas portas, até internacionais.

 

Algo que também chama a atenção é a parceria com o Luiz Rosemberg. Você já produziu dois filmes dele e ano que vem fará mais um. Como surgiu esta aproximação?

CB: A Cobal é meio que a Boca do Lixo do Rio de Janeiro, volta e meia tem diretor por lá. Algo que me incomodava muito era as pessoas falarem de um diretor mais antigo, que fazia uns filmes muito legais, mas estava há 40 anos sem filmar. Eu não aguentaria, acho que teria um câncer se passasse por algo do tipo. Então resolvi tentar ajudar. Foi o que aconteceu com o Rosemberg, e, depois, outros diretores em situação parecida começaram a me procurar. Surgiu então um novo nicho na Cavídeo, que é pegar estes diretores mais veteranos e ajudá-los. Já produzi Maurice Capovilla, Luiz Carlos Lacerda, agora vou trabalhar com Sérgio Ricardo... São pessoas que eram referência e estavam parados, por não se adaptarem a este novo método de produção digital ou esta burocracia atual do cinema brasileiro.

 

No meio desta trajetória como produtor, você começou também a dirigir e roteirizar. Como foi esta transição?

CB: Como produzo muito filme eu acabo ficando mais conhecido por esta função, mas estou sempre fazendo também [como diretor]. Fiz os documentários "Cidade de Deus - 10 anos aepois" e "Funk Brasil - Cinco visões do batidão", estou finalizando a ficção "Salto no vazio”, terminando um doc sobre o Rosembeg... Nunca parei de dirigir, consigo fazer um por ano. Não sou muito é roteirista na verdade. Às vezes pego o roteiro de outras pessoas. Mas agora estou querendo dirigir mais e produzir menos.

 

A Cavídeo está completando 20 anos e, ao longo deste período, várias foram as gerações de cineastas e cinéfilos que passaram por ela. Como você vê esta trajetória e a homenagem feita pela ACCRJ?

CB: Algo muito bacana que vejo na locadora é que pessoas que vão lá desde criança, quando alugavam filmes infantis, hoje pegam Bergman. De certa forma, a Cavídeo contribuiu um pouco para esta formação cinéfila. Isso é muito legal. Fico orgulhoso por isso, de contribuir com este universo artístico. Vejo esta homenagem muito mais como algo afetivo, pois a galera convive com a Cavídeo há muito tempo. É um reconhecimento pelo trabalho que a Cavídeo fez e está fazendo ainda.

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