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Elle, de Paul Verhoeven (França / Alemanha / Bélgica)

Por Marcelo Janot

Desconstruindo a hipocrisia

Originalmente, o diretor holandês Paul Verhoeven planejava filmar “Elle” nos Estados Unidos, em inglês, mas nenhuma das atrizes hollywoodianas que tinha em mente aceitou o convite para protagonizar esta adaptação do romance francês “Oh...”, de Philippe Djian. O tema do filme, que envolve a maneira peculiar com que uma mulher lida com o estupro de que foi vítima, assim como a abordagem do roteiro de David Byrke, mostrou que Hollywood e muitas de suas estrelas parecem não estar preparados ainda para histórias que lidam diretamente de forma tão desestabilizadora com temas como a violência e a hipocrisia nas relações humanas.

 

Melhor para o cinema francês, que tem o privilégio de engrossar sua rica filmografia com uma obra de Verhoeven, e para Isabelle Huppert, cujo talento e experiência em papéis “difíceis” (como “A professora de piano”, por exemplo) a colocam como a escolha mais acertada para dar conta da complexidade psicológica e dramática da personagem Michèle Leblanc.

 

É sob o testemunho de um gato – e do espectador – que o filme começa com Michèle sendo estuprada por um homem mascarado em sua casa. A sua surpreendente reação de tranquilidade frente à agressão sexual é o primeiro fator de estranhamento que o filme irá provocar. Uma sensação que se repetirá ao longo dos 130 minutos de “Elle”: jamais saberemos ao certo se suas atitudes e o jogo em que se envolve com o agressor são fruto do desejo de vingança pelo trauma gerado ou simplesmente são a reação de uma mente doentia que tem origem em um episódio trágico, que protagonizou ao lado de seu pai, um serial killer que cumpre prisão perpétua.

 

É notório como o roteiro flerta com o cinema de gênero, utilizando elementos do thriller de suspense, reforçado pela atmosfera criada pela trilha sonora de Anne Dudley, como se Verhoeven quisesse reprocessar, quase um quarto de século depois, seu provocador “Instinto selvagem” (1992), que alçou Sharon Stone ao posto de sex symbol. Ambos os filmes trazem mulheres dominadoras, cada qual à sua maneira, desmontando o status quo de um universo predominantemente machista e masculino. Em “Elle” é Michèle quem está no controle da situação, permanentemente humilhando, com toques de perversidade, aqueles que estão à sua volta, como a mãe, a sócia, os empregados e especialmente o ex-marido e o filho quando estes arrumam parceiras que possam ser uma “ameaça” ao seu controle.

 

E é aí que “Elle” ganha uma camada extra que o coloca num patamar acima em relação a “Instinto selvagem”: o filme funciona também, e sobretudo, como um drama social recheado de humor negro, que trata com perspicácia e agudez a hipocrisia moral e religiosa que envolve as relações familiares burguesas. Por conta disso, a revelação feita ao final por uma personagem católica fervorosa é o fecho com chave de ouro para um filme que mostra que as aparências quase sempre enganam aqueles que se recusam ou não conseguem enxergar a complexidade do mundo que nos cerca – e a do cinema de Paul Verhoeven.

Elle(França, 2016), de Paul Verhoeven. Com Isabelle Huppert, Laurent Lafitte, Anne Consigny, Charles Berling.

Drama. Michèle (Isabelle Huppert) é a executiva-chefe de uma empresa de videogames, a qual administra do mesmo jeito que administra sua vida amorosa e sentimental: com mão de ferro, organizando tudo de maneira precisa e ordenada. Sua rotina é quebrada quando ela é atacada por um desconhecido, dentro de sua própria casa. No entanto, ela decide não deixar que isso a abale. O problema é que o agressor misterioso ainda não desistiu dela. 130 min. 14 anos.

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