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No Intenso agora

Por Luiz Fernando Gallego

Porque o instante existe

“Eu canto porque o instante existe”. Foi assim que a maior poeta brasileira justificou seus poemas. E talvez toda arte seja mesmo uma tentativa de apreender o instante fugidio. E talvez todo ser humano desejasse parar o tempo – em seus momentos felizes, claro. Talvez por isso João Moreira Salles tenha escolhido como leitmotiv de seu filme os momentos felizes de sua mãe na China em 1966.

 

Revê-la alegre, tantos anos depois de morta, em filmes amadores rodados na visita que fez à China em plena “revolução cultural” de Mao, teria disparado no filho a vontade de criar este filme em camadas que se superpõem – e que se abrem em outras perspectivas, perguntas e possibilidades de leitura. Um filme político? Um filme pessoal? Sobre a alegria que perdemos? Sobre coisas passadas, mas registradas em imagens aleatórias, agora justapostas?

 

Um filme que edita momentos tão dessemelhantes em sua parecença? Para sublinhar diferenças ou semelhanças? O que houve (se houve) em comum na China de 1966 e na França de 1968? O que houve entre o alegre Maio de 68 em Paris e o dramático agosto daquele mesmo ano em Praga?

 

O Brasil surge poucas vezes, sendo uma delas quando João recorta imagens de grandes funerais que serviram a catarses coletivas com o travo amargo de vidas (algumas muito jovens) desperdiçadas. E tanta energia usada em Maio de 68, foi desperdiçada? Que movimento foi este que não trouxe nenhuma mudança imediata no governo? E o que deixou em seu rastro a “revolução cultural”?

 

Meio século antes de quando João finalizou este filme, sua mãe, a socialite Elisinha Moreira Salles, mulher de banqueiro e embaixador, aparece feliz em filmes amadores bem coloridos, num país de orientação comunista.  O que a alegrava? Ela quis conhecer a Cidade Proibida sem conseguir: estava fechada para turistas, tal como estava proibida toda proximidade com o passado chinês (e com a cultura ocidental). E o que restou da vibração dos jovens chineses comunistas filmados pela mãe do cineasta? E de Maio de 68, cuja inspiração vinha ligada a alguma ideia de “esquerda”? O que restara da Primavera de Praga que havia sido de oposição ao comunismo da então URSS? O que resta de nossas alegrias quando mergulhamos na depressão que matou Elisa?

 

O cinema e seus derivados audiovisuais são a coisa mais próxima à “máquina do tempo” sonhada por tantas ficções. Algo já passado pode ficar acessível em registros mais ou menos perenes. Em seu filme, João decompõe a imagem do instante em que um jovem lança uma pedra em Maio de 68: seu movimento para trás, para frente e de novo para trás. Um pouco como se passa em nossa memória mais abstrata do que o registro fílmico.

 

“No intenso agora” é sobre o instante – aquilo que justifica o canto de Cecília Meireles, e o filme de João. Ela termina seu poema dizendo: “E um dia sei que estarei mudo: - mais nada”. Até lá, haverá cada instante com cada intenso AGORA.

No Intenso Agora (2017). Direção: João Moreira Salles.

Documentário. Sinopse: Ambientado na década de 1960, mostra diferentes acontecimentos políticos por meio das memórias da mãe do cineasta, alicerçadas por imagens de arquivo de fatos como a revolta estudantil de Paris. 127 minutos. 12 anos.

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