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Os Oito Odiados (The Hateful Eight), de Quentin Tarantino (EUA)

Por Rodrigo Fonseca

A palavra como chumbo quente na neve fria

Nos tempos cinematográficos em que o faroeste era a “Ilíada” do mundo, ou seja, a narrativa constitutiva dos valores modernos, com sua noção de Bem e de Mal expressa no conceito de mocinhos vs. bandidos, Hollywood criou um cógito (quase cartesiano) segundo o qual o western é igual a imensidão espacial, bangue-bangue é igual a terras inóspitas imensas a serem desbravadas. Assim profetizaram os Homeros do filão: John Ford e Howard Hawks. Contudo, a partir de 1950, quando cicatrizes da Segunda Guerra arranharam a representação clássica do escapismo heróico e o politicamente correto engatinhou seus primeiros passeios pelas telas, realizadores como Anthony Mann (em “Winchester 73” e em “E o sangue semeou a terra”) subverteram esse cartesianismo ao criar o chamado western psicológico em que as pradarias mais perigosas eram aquelas esculpidas na mente dos próprios caubóis, duelo após duelo. Dali pra diante, virou moda uma modalidade mais huis clos do faroeste, de ambientação fechada, que deu mais valor às inquietações existenciais de seus protagonistas, tridimensionalizando seus sentimentos, humanizando-os, o que foi fundamental tanto para o spaghetti de italianos como Sergio Leone (“O bom, o mau e o feio”), quanto para o cinemanovismo de americanos como Arthur Penn (“Pequeno grande homem”). E é a essa corrente de Reforma... na forma... no ethos... na ética... que “Os oito odiados” (“The hateful eight”), talvez o mais ousado de todos os filmes de Quentin Jerome Tarantino, está filiado.

 

Laureada com o Oscar de melhor trilha sonora original para Ennio Morricone, esta produção de US$ 44 milhões – cuja bilheteria global beirou US$ 155 milhões – goza de uma exuberância visual como poucas vezes se enxergou no dito far-west, por conta da captação em película Kodak 65mm a fim de viabilizar uma projeção em 70mm. Captada assim, a qualidade da imagem valoriza mais e melhor a dimensão agigantada da tela. E a fotografia de Robert Richardson (de “O aviador”) se lambuza na progressão aritmética de possibilidades à sua frente para imprimir beleza (e gerar epicização) ao fitar o mundo nevado à sua volta, em locações míticas no Colorado. Mas a exuberância não se limita ao mundo aberto, à neve. Ela é ainda maior nos planos em que a ação se concentra numa taberna fedida a guisado, colorida em tons de sépia, marrom-madeira e vinho. É ali que “Os oito odiados” explode como a obra-prima que seus reclames prometiam – mais uma obra-prima do homem que nos deu “Bastardos inglórios”. Uma obra-prima da palavra: palavra-chumbo. Quente.

 

O cenário é este: estamos no Wyoming. A câmera acha um lugar de (des)conforto para si após testemunhar uma longa peregrinação por uma nevasca, na qual se percebe um certo ar de protagonismo no caçador de recompensas John “The Hangman” Ruth (Kurt Russell, em desempenho antológico). O mesmo ar se faz sentir em torno do ex-militar da Guerra Civil Major Marquis Warren (Samuel L. Jackson). Ruth arrasta consigo a criminosa condenada à forca Daisy Domergue (uma endiabrada Jennifer Jason Leigh). E a eles se junta o Xerife Mannix (Walton Goggins, vilão em “Django livre”, que aqui mostra ser um ator de ilimitadas ferramentas). Eles se arrastam frio adentro até chegarem a um saloon/pensão. Uma vez protegidos do frio, encontram Bob "The Mexican" (Demian Bichir), Oswaldo "The Little Man" Mobray (Tim Roth), Joe "The Cow Puncher" Gage (Michael Madsen) e Sanford "The Confederate" Smithers (Bruce Den). Pronto! Eis os tais “oito” do título, todos juntos. Ali, o ódio de cada um há de ser uma arma carregada de sagacidade. Ou de fúria.

Os Oito Odiados (The Hateful Eight) - (EUA, 2015), de Quentin Tarantino. Com Jennifer Jason Leigh, Channing Tatum, Walton Goggins, Samuel L. Jackson, Zoë Bell, Kurt Russell, Tim Roth, Michael Madsen, Demian Bichir.

Faroeste. Sinopse: Durante uma nevasca, o carrasco John Ruth (Kurt Russell) está transportando uma prisioneira, a famosa Daisy Domergue (Jennifer Jason Leigh), que ele espera trocar por grande quantia de dinheiro. No caminho, os viajantes aceitam transportar o caçador de recompensas Marquis Warren (Samuel L. Jackson), que está de olho em outro tesouro, e o xerife Chris Mannix (Walton Goggins), prestes a ser empossado em sua cidade. Como as condições climáticas pioram, eles buscam abrigo no Armazém da Minnie, onde quatro outros desconhecidos estão abrigados. Aos poucos, os oito viajantes no local começam a descobrir os segredos sangrentos uns dos outros, levando a um inevitável confronto entre eles. 182 min. 16 anos.

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