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Filho de Saul (Saul Fia), de László Nemes (Hungria)

Por Luiz Fernando Gallego

O inferno de Saul

O que Sartre realmente disse com o aforismo “O inferno são os outros” refere-se à situação em que nos deixamos aprisionar a uma autoimagem congelada a partir da ideia que os outros fazem de nós. Deixam de existir possibilidades abertas para o devir e ficamos como mortos em vida: não se pode mais aspirar a mudanças, reconstruções ou ressignificações sobre nós mesmos; nunca mais será experimentada a possibilidade de mudar nossa própria história.

 

Por outro lado, nem o inferno de fogo e enxofre imaginado pela teologia cristã ou seus derivados dantescos na “Divina comédia” poderiam conceber o inferno vivido pelos personagens principais de “O filho de Saul”, aprisionados - mais do que em um campo de concentração nazista - em uma rotina de subserviência automática, de perda de identidade humana, de anulação do ser e do vir a ser - tal como no inferno de Sartre.

O “Saul” do título, além de tudo, foi reduzido - teve que se submeter - ao papel de fazer os piores trabalhos dentro dos campos porque “contra” seus semelhantes: ele é um daqueles prisioneiros judeus que colaboravam com as atividades ligadas ao extermínio dos demais. Sendo judeu, tornou-se imperativo desfazer seus laços de identificação com os outros judeus, não manifestar (não sentir?) nada quando “ajudasse” cada novo grupo de prisioneiros a tirar suas roupas para serem encaminhados aos “banhos” - que eram as câmaras de gás. Depois, trabalhavam nos crematórios para reduzir os corpos a cinzas.

 

Mas há um momento em que Saul identifica um jovem morto como seu filho. E sai, obsessivamente, em busca de um rabino que recite a reza fúnebre do kaddish, visando enterrar aquele corpo de forma menos indigna e diversa de tudo o que ele vinha fazendo até então.

Como disse o diretor deste filme, “o Holocausto não é uma história de sobrevivência, mas de extermínio dos judeus da Europa”. E é com esta premissa que o filme vai se desenvolver de forma absolutamente original. O foco está quase sempre em primeiro plano no rosto de Saul ou no rosto dos demais personagens com quem ele está, enquanto os corpos mortos só são vistos de modo amorfo, em segundo plano e totalmente fora de foco, sem o menor traço de exploração mórbida sensacionalista.

 

Ainda é admirável no modo escolhido para narrar visualmente esta história, com mínima - mas pertinente - utilização de trilha musical, e máximo uso de som ambiente (inclusive sons de origem extracampo) que, ao mesmo tempo em que induz um certo grau de imersão do espectador na realidade subjetiva do que pode ter sido estar em um campo de extermínio, também leva a plateia a um distanciamento crítico. São longuíssimos planos-sequência, sem cortes, com a câmera instável e em planos fechados no rosto absolutamente impassível do ator Géza Röhrig, capaz de transmitir, sem mudança de expressão facial, a chance de seu personagem quebrar com a condição em que foi colocado pelo entorno: ele conseguiu estabelecer um vínculo com aquele corpo, um filho que pode não ser seu, mas que é como que “adotado” por meio de um investimento emocional de consideração e respeito a tudo a que ele tivera que renunciar até então.

O Filho de Saul (Saul Fia) - (Hungria, 2015), de László Nemes. Com Géza Röhrig, Levente Molnár, Urs Rechn, Todd Charmont, Jerzy Walczak, Marcin Czarnik. Drama. Sinopse: 1944, campo de concentração de Auschwitz, durante a Segunda Guerra Mundial. Saul (Géza Röhrig) é um judeu obrigado a trabalhar para os nazistas, sendo um dos responsáveis em limpar as câmaras de gás após dezenas de outros judeus serem mortos. Em meio à tensão do momento e às dificuldades inerentes desta tarefa, ele reconhece entre os mortos o corpo de seu próprio filho. 107 min. 14 anos.

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