A forma da água
Por Ana Rodrigues
A irrefreável forma do amor
O amor é um tema básico do cinema. É tão essencial que está presente em quase toda temática de alguma forma. Essencial, como a água para a humanidade, em muitas variações. O diretor e roteirista Guillermo Del Toro criou uma provocadora metáfora para retratar o amor romântico. “A forma da água” realiza uma imersão poética para contar a história da faxineira surda que se apaixona por uma criatura aquática. A trama se desenvolve nos Estados Unidos, em 1962, no auge da Guerra Fria e dos conflitos sociais e raciais. Elisa Esposito (Sally Hawkins), zeladora em um laboratório secreto do governo, se encanta com o ser fantástico (Doug Jones) mantido preso e torturado no local. Ela recorre ao melhor amigo e vizinho Giles (Richard Jenkins) e à colega de turno Zelda (Octavia Spencer) para executar o plano de resgate da criatura.
O cinema de Del Toro, especialista na concepção de seres estranhos, mais uma vez usa a fantasia para falar do mundo real. A zeladora, de origem latina, descobre que o estranho não é um perigo, mas, sim, uma vítima. A trama incorpora outras representatividades. A colega é negra, com um marido machista e servil ao poder, e o amigo é gay. O governo americano e a espionagem soviética representam as estruturas opressoras, os extremos que enfatizam diferenças e separam. É o amor de Elisa e a cumplicidade de seus amigos que unem e libertam. Uma assinatura do diretor que, em “O labirinto do fauno” (2006), conecta uma criatura à menina Ofélia, para reproduzir a tragédia da ditadura Franco na Espanha, e, em “Hellboy” (2004), mostra um demônio nascido do nazismo, que se une a excluídos para ser heroico.
O amor, assim como a água, pode ter a forma que quiser. A água cabe em qualquer ambiente, se adapta, se transforma, se funde. “A forma da água” é sobre isso. O amor não tem padrão, gênero ou religião. Assim como a água, amor não pode ser represado, contido. Ele ultrapassa barreiras. Usando o poder da linguagem imagética, Del Toro mantém a câmera em leve movimento o tempo todo, fluindo, como água. Não há planos estáticos no filme, há sempre flutuação.
O uso das cores é outra imensa contribuição para a beleza da forma. O verde do laboratório secreto, representação futurista, deriva para a tonalidade mais aquática, entre o verde e o azul da casa de Elisa. É lá que o amor transborda metaforicamente e literalmente. Já o vermelho aparece apenas no sangue e em duas referências ao amor: o figurino de Elisa e na porta e nas poltronas do cinema, local em que a criatura viverá um encantamento. O cinema clássico é a inspiração na trilha sonora que vai de “You’ll never know”, na voz de Alice Faye, ao “Chica, chica boom chic”, da nossa Carmen Miranda, e na referência a “O monstro da Lagoa Negra” (1954).
Vencedor de quatro Oscars, incluindo melhor filme e melhor direção, e do Leão de Ouro em Veneza, “A forma da água” celebra a linguagem do cinema, em que os dois personagens principais não precisam da fala para a expressão do amor.
A forma da água (The shape of water), de Guillermo del Toro (EUA, 2017). Com Sally Hawkins, Octavia Spencer, Michael Shannon.
Aventura/Drama/Fantasia. Sinopse: Década de 60. Em meio aos grandes conflitos políticos e transformações sociais dos Estados Unidos da Guerra Fria, a muda Elisa, zeladora em um laboratório experimental secreto do governo, encanta-se por uma criatura fantástica mantida presa e que é maltratada no local. Para executar um arriscado e apaixonado plano de resgate, ela recorre ao melhor amigo Giles e à colega de turno Zelda, em uma aventura que pode custar muito mais do que o seu emprego. 123 min. 16 anos.