top of page

Melhor Filme: Dogville, Lars Von Trier (Dinamarca/Suécia/Noruega/Finlândia/Reino Unido/França/Alemanha/Holanda)

Por Luciano Trigo

Mais do que uma crítica à sociedade e à cultura americanas, Lars Von Trier constrói em Dogville(2003) uma fábula, em moldes brechtianos, que diz respeito à própria natureza humana. É claro que a América da Grande Depressão proporciona os ingredientes ideais para esse empreendimento, porque ali se radicalizaram de forma hiperbólica distorções de valores morais e sociais, mas o alvo do raivoso cineasta dinamarquês não tem fronteiras: é o espírito burguês e hipócrita, que massacra, explora e desumaniza o indivíduo, não importa onde.

O indivíduo em questão é Grace, que, fugindo de um grupo de gângsteres, é acolhida pela pequena comunidade rural de Dogville. A reticência inicial frente ao "outro" é substituída pelo impulso de tirar partido da situação. Bondade, solidariedade e generosidade se revelam a face visível e enganosa de uma perversão coletiva, diante da qual Grace se torna vítima impotente. E quanto mais vulnerável ela se mostra, mais os habitantes da cidade mostram os dentes, até que esse processo de escravização (inclusive sexual) atinge dimensões inimagináveis, como se Grace (o nome é sugestivo, com implicações religiosas) estivesse sendo oferecida em sacrifício a uma divindade maligna: o espírito protestante do capitalismo. 

Os elementos teatrais, começando pelos cenários riscados no chão, criam um efeito de artificialidade que a divisão da narrativa em capítulos e até mesmo o estilo da interpretação acentuam deliberadamente. A intenção fabular é evidente. É como se Lars Von Trier combinasse a "Ópera dos Três Vinténs" de Brecht com "Nossa Cidade" de Thornton Wilder, para mostrar o avesso das relações sociais. É claro que o diretor alimenta a polêmica em torno do anti-americanismo, por exemplo, ao encerrar o filme com um seqüência de fotografias sobre a dureza da Depressão, ao som de David Bowie. O próprio diretor demonstrou seu gosto pela provocação no Festival de Cannes, ao sugerir que a decisão de filmar nos Estados Unidos foi uma reação às críticas negativas dos americanos a "Dançando no Escuro". 

Dogville é mais um exemplo do cinema radical de Lars Von Trier, dando seqüência a "Europa", "Ondas do Destino" e "Dançando no Escuro" e confirmando o cineasta dinamarquês como um dos artistas mais perturbadores em atividade no cinema, e um dos poucos capazes de reunir um elenco estelar para rodar um filme de três horas sobre a culpa, a vingança e a hipocrisia moral, com uma mensagem nada edificante, aliás já presente em seus longas anteriores: o ser humano é capaz de tudo.

© 1984 - 2024 Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro

bottom of page