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Eleição e Mercado

Por Pedro Butcher

A escolha dos melhores filmes do ano realizada pela Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro leva em consideração os longas-metragens que estrearam nas salas de cinema da cidade ao longo de doze meses. Em 2012, foram pouco mais de 330 títulos lançados - em média, seis por semana; quase um por dia.

Pode parecer muita coisa - e, de fato, o é. Mas, ainda assim, o conjunto dos filmes distribuídos comercialmente nos cinemas representa uma pequeníssima parcela no oceano de produções audiovisuais do mundo contemporâneo. Do ponto de vista do esforço de produção - e não da criação, que fique bem claro -, a revolução digital tornou o ato de filmar quase tão simples quanto o de escrever. De alguns anos para cá, cresceu a sensação de que o número de filmes produzidos ultrapassou a capacidade humana de apreciá-los.

Multiplicaram-se os filmes e também as telas. As imagens em movimento nunca foram tão centrais em nossas vidas. Estamos cercados de monitores e câmeras dos mais diversos formatos e tamanhos, em um cenário futurista que tornou a tradicional exibição nos cinemas apenas a ponta mais nobre, e nem sempre a mais rentável, de uma cadeia maior e mais complexa. A TV paga, o video on demand(VOD, em que o espectador paga para ver um filme na TV ou no computador) e a internet em banda larga podem não ser ainda uma realidade para todos, mas, na mesma medida em que vêm crescendo vertiginosamente, têm tornado o acesso aos filmes muito mais fácil e rápido.

As novas tecnologias desestabilizaram profundamente o cinema tradicional e transformaram os hábitos da plateia. Hoje é possível ver filmes na TV aberta, na TV paga, pelos serviços de video on demand ou baixando diretamente no computador. O fato de a grande maioria do público estar mais acostumada a assistir a filmes em casa reflete-se diretamente no comportamento dentro do cinema. A sala do multiplex passou a ser uma extensão de nossas casas, onde se fala e se come à vontade. (Só não é possível interromper o filme para ir ao banheiro). Paralelamente, a digitalização de toda a cadeia produtiva do audiovisual tem consequências diretas tanto na dramaturgia dos filmes - principalmente nas produções voltadas para o público jovem, cada vez mais influenciadas pelosgames - como no próprio negócio.  

Diante da multiplicação das "janelas", a forma mais tradicional de se ver um filme - aquela em que o espectador escolhe o que quer ver, sai de casa, pega um meio de transporte, compra um ingresso e, enfim, senta-se diante de uma tela grande para assistir à "fita" - tornou-se um "pequeno milagre". Para produzir esse "pequeno milagre" é necessário justificar esse movimento, de maneira que o espectador não decida esperar para ver aquele mesmo filme no conforto de seu sofá. É preciso criar um grande evento. Não por acaso, nos últimos anos ficou muito mais caro lançar um título nos cinemas do que produzi-lo.

A principal consequência desse processo é a radicalização de uma dicotomia que sempre marcou a atividade cinematográfica. Em mais de cem anos de história, nunca a polarização entre filmes "comerciais" e "artísticos" foi tão intensa. Em vários países, incluindo o Brasil, o mercado cinematográfico vem crescendo para os filmes que contam com grandes lançamentos e investimentos de marketing, enquanto os filmes pequenos e médios têm encontrado cada vez mais dificuldades para desembarcar nos cinemas. Os chamados "circuitos de arte" estão em crise e, em muitos casos, ameaçados de fechar. Produtores e distribuidores independentes investem em novos formatos de distribuição e procuram alternativas. Nesse contexto, os festivais, que se multiplicaram Brasil afora, às vezes em cidades que sequer têm salas de cinema, ganharam importância singular, em muitos casos representando a única oportunidade de se apreciar determinados filmes na tela grande. 

Para as produções mais independentes e autorais, uma das saídas foi buscar um movimento contrário ao convencional. Se o espectador não vem até o filme, o filme vai até o espectador. Lançamentos simultâneos nas salas de cinema e no formato VODsão cada vez mais comuns nos Estados Unidos. Recentemente, "A Negociação", com Richard Gere e Susan Sarandon - lançado de forma tradicional no Brasil -, ganhou uma distribuição alternativa no mercado americano e se tornou o primeiro filme cujo faturamento em VOD (US$ 11 milhões) superou o dos cinemas (US$ 7,5 milhões).

Tudo isso para dizer que, para muito além dos mais de 300 filmes lançados em salas que não entraram na lista dos dez mais da ACCRJ, existem também centenas de filmes que não foram considerados na votação, por não terem encontrado um lugar ao sol no circuito comercial. Entre eles estão títulos que as distribuidoras, por decisões comerciais nem sempre muito lógicas, resolveram lançar diretamente no mercado de homevideo (DVD e blu-ray). E isso vale tanto para filmes de perfil mais comercial (como "Esse É o Meu Garoto", com Adam Sandler, que foi direto para as locadoras) como para filmes "de arte", como o premiadíssimo "O Abrigo", de Jeff Nichols, vencedor da Semana da Crítica do Festival de Cannes, ou a versão de Ralph Fiennes para a tragédia de Shakespeare "Coriolanus".

Outra quantidade significativa de filmes acaba sendo exibida diretamente nos canais da TV por assinatura - caso de "Outrage", de Takeshi Kitano, ou dos documentários "Method to the Madness of Jerry Lewis" e "Woody Allen". E há também aqueles títulos, não raro mais desafiadores do ponto de vista de experimentação e linguagem, que ganham exibições exclusivas em mostras e festivais de cinema.

A relação dos eleitos pela ACCRJ, como toda lista de "melhores", é um ato de seleção e de valorização diante da infinidade audiovisual contemporânea. É preciso delimitar, afirmar as diferenças. No processo, muitos bons filmes bons ficaram de fora. Alguns, por pouco, não chegaram lá - foram eliminados no "segundo turno" da votação por uma pequena diferença de votos, caso de "O Porto", de Aki Kaurismaki, "Habemus Papam", de Nanni Moretti, "Pina", de Wim Wenders, "Holy Motors", de Leos Carax, "O Cavaleiro das Trevas Ressurge", de Christopher Nolan, "Fausto", de Alexander Sokurov, "Moonrise Kingdom", de Wes Anderson, "As Vantagens de Ser Invisível", de Stephen Schbosky, "Sete Dias com Marilyn", de Simon Curtis, "Eu Receberia as Piores Notícias de Seus Lindos Lábios", de Beto Brant e Renato Ciasca, e "Sudoeste", de Eduardo Nunes. 

Todas essas transformações, enfim, representam um desafio para a crítica. É preciso estar atento ao que tem sido produzido e defender a diversidade nas telas e o acesso aos filmes, sem, contudo, perder o rigor e o critério.

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