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Entreatos, de João Moreira Salles (Brasil)

Por Ricardo Cota

Embora não seja o foco do filme de João Moreira Salles, o marketing político é, digamos assim, um dos protagonistas de Entreatos (2004). Em diversas seqüências, a discussão sobre a imagem do político está em primeiro plano. Desde o já famoso apego pelos nós de gravata, até os conselhos de Duda Mendonça sobre a postura do candidato diante das câmaras de televisão, o que se registra em muitas passagens do documentário é o cuidado com a aparência, o zelo pela superfície que nas lides eleitorais se torna absolutamente decisiva.

A política transformada em espetáculo voltado para o grande palanque eletrônico não pode se dar ao luxo do imprevisível. Cada fala, cada take, cada matéria veiculada é alvo de inúmeras revisões que, ainda assim, muitas vezes só vão ao ar depois de passar pelo crivo de pesquisas qualitativas, cujo objetivo é esmiuçar ruídos de comunicação que devem imediatamente ser corrigidos.

O documentário, quando movido por um mínimo de ética, está em conflito com esse mundo de aparências. Sem o rigor das linhas de pauta do jornalismo e muito menos sem as amarras da propaganda política, o documentarista parte com uma câmera na mão e sem muita idéia do que pode acontecer. Dentre os muitos clichês da cartilha do marketing político, há um que marca com clareza, ainda que sem sofisticação, os limites entre o documental e o publicitário: "o improviso é o caminho mais rápido para o erro". Imagine se um Eduardo Coutinho seguisse tal regra? O documentário estaria privado de um dos seus principais realizadores.

A evidência da disparidade dos olhares do documentarista e do marqueteiro, explícita, mesmo que involuntariamente, em Entreatos, não deve, no entanto, servir de conforto para o estabelecimento de parâmetros de linguagem. Para além do filme de João Moreira Salles, o que se vê hoje são interseções que criam monstrengos como o documentário fake, que tanto serviço tem prestado ao marketing político, seja para dar uma aura de espontaneidade e credibilidade a candidatos conservadores, seja para dar mais consistência a argumentos de contestação.

A filmografia de João Moreira Salles, que tem se dedicado, ao contrário da de Eduardo Coutinho, a traçar perfis de personalidades, e não de anônimos, coloca o tempo todo a questão do grau de envolvimento entre quem filma e quem é filmado. Ao contrário do marketing, onde a cumplicidade é total, nos filmes de João Moreira Salles estima-se a graduação do encontro, valorizando um olhar subjetivo, em que a intermediação do espectador não é desprezada. Discutir esse olhar, à luz da comparação com o marketing político e seus subgêneros, pode ser um caminho para entender as mais elementares noções de um documentário e perceber as diferenças entre se colocar o político a serviço do cinema ou o cinema a serviço do político.

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