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História Real (The Straight Story), de David Lynch (EUA)

Por Gilberto Silva Jr.

Quando durante os créditos iniciais de História Real (The Straight Story, 1999) lemos: "Walt Disney Pictures apresenta um filme de David Lynch", a tendência inicial é pensarmos que, ou mudou a Disney,ou mudou David Lynch. Mas a verdade é que, neste filme ímpar, ambos permanecem fiéis a seus ideais. A Disney ao apresentar um filme adequado a toda família, com uma temática que ressalta os valores humanos. E David Lynch ao trabalhar, como em quase toda sua obra, aspectos da vida americana. Só que aqui David Lynch não faz uso de uma espécie de "lente de aumento" ou "microscópio", que lhe proporciona uma observação daquilo de bizarro que está por trás do cotidiano das pequenas cidades, como em Veludo Azul ou na sérieTwin Peeks. Em História Real, acaba por centrar o foco do seu olhar nas figuras anônimas, cidadãos comuns que passam pela vida de forma discreta, mas singela.

Uma figura como Alvin Straight, que, aos 73 anos, com a saúde debilitada e sentindo aproximar-se o final da vida, recebe a notícia que seu irmão Hank, com quem estava brigado há dez anos, sofrera um derrame. Disposto a rever Hank a qualquer preço e sem poder dirigir um automóvel, Alvin decide percorrer os mais de 500 km que separam sua casa em Laurens, Iowa, da do irmão em Mt. Zion, Wisconsin, pilotando um cortador de grama através das estradas. Alvin, desta forma, leva mais de um mês para cumprir um trajeto que, normalmente, seria feito em algumas horas, repassando e refletindo sobre sua vida e conhecendo várias pessoas em seqüências que demonstram a força da solidariedade humana.

História Real é baseado em um episódio verídico acontecido em 1994. O roteiro, escrito por Mary Sweeney e John Roach acompanha a viagem de Alvin, que morreu em 1996, à medida que este vai esbarrando em personagens que representam diferentes estágios da vida. Assim temos as indecisões da adolescência com a menina grávida, a esperança e o vigor da juventude com os ciclistas, o desespero e o estresse da balzaquiana que mata um leão (e também um veado) por dia, a maturidade e equilíbrio do casal de meia-idade que acolhe Alvin em sua casa enquanto este espera o conserto de seu transporte e o desencanto do velho que, como nosso protagonista, havia combatido durante a 2ª Guerra. Aos poucos, Alvin vai também revelando um pouco de sua vida sofrida, como seu passado de alcoolismo, sua esposa, morta há alguns anos, e os 14 bebês a que esta dera a luz, dos quais apenas 7 vingaram. Mas apesar de tudo, Alvin e sua filha Rose, de inteligência limitada e passado trágico, jamais deixam de contemplar as estrelas, uma imagem recorrente em todo o filme.

David Lynch conduz de forma sóbria e brilhante este filme que não pode ser classificado como menos que comovente e recheado de momentos que ressaltam o prosaico, mas nunca o banal; com um tom abertamente sentimental, porém que não resvala para a pieguice, embalado por belíssima música de Angelo Badalamenti. Lynch consegue fazer com que o espectador acompanhe as experiências do personagem como se fossem suas, pequenos prazeres como os simples atos de contemplar a paisagem ao longo da estrada ou saborear uma cerveja após anos de abstinência.

Mas o grande parceiro do diretor para que História Real atingisse esta impressionante veracidade foi o ator Richard Farnsworth, que, aos 78 anos de idade, não apenas interpretou o papel, mas vivenciou abertamente um personagem que, assim como ele, possuía um problema nos quadris que o obrigava a caminhar apoiado em duas bengalas. Só que toda esta vivência talvez tenha sido um pouco intensa demais para o veterano Farnsworth, que começara sua carreira em cinema como dublê e recebera consagração como ator já em idade avançada. Em outubro de 2000, meses após receber uma indicação ao Oscar por sua atuação como Alvin (e perder para o Kevin Spacey de Beleza Americana), Farnsworth cometeu suicídio, após receber um diagnóstico de câncer.

Lançado no Brasil em janeiro de 2002, com um atraso de quase três anos após sua estréia no Festival de Cannes de 1999, História Real, com seu intenso realismo e sua visão emotiva e otimista da vida, contrasta com o trabalho posterior de Lynch, o polêmico e mais badalado Cidade dos Sonhos de 2001, marcado por uma abordagem onírica e fortes tons de desencanto. Só que a proximidade entre as duas estréias acabou de certa forma por favorecer o espectador carioca, que teve assim a oportunidade de conhecer e comparar duas facetas diversas de David Lynch, dono de uma das obras mais pessoais e consistentes do cinema contemporâneo.

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