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Homenagem ao cineasta Paulo César Saraceni 

Por Carlos Brito

O que se esconde por trás das tradições alicerçadas no patriarcado e no catolicismo apostólico romano? Moral, correção, puritanismo, execração do sexo, respeito e amor à família? Não necessariamente... O escritor Lúcio Cardoso sabia disso. Criado no opressivo ambiente familiar/religioso característico do interior das Minas Gerais da primeira metade do século XX, ele mesmo, homossexual, testemunhou a hipocrisia e a degeneração que se escondem por trás da imagem de famílias que, ao menos em sua fachada, mostram à sociedade apenas sua face moralista.

Determinado a expor aquele ambiente obscuro que conhecia tão bem, Lúcio escreveu sua obra-prima: "A Crônica da Casa Assassinada", verdadeira radiografia que, por meio de cartas, relatos e trocas de mensagens, escancarava sem pudores a vida da fictícia família Menezes - uma síntese dos grupos familiares mineiros - em toda a sua hipocrisia e decadência, tanto moral quanto financeira.

Levada ao leitor por meio de um romance polifônico, a trama de caráter eminentemente psicológico teria, em sua transposição para a grande tela, a mesma sorte que teve no papel. A adaptação do romance de Lúcio Cardoso ficaria a cargo de Paulo Cezar Saraceni.

Nome fundamental da história do cinema brasileiro, e notadamente do movimento cinematográfico mais importante que já existiu no país, o Cinema Novo, Saraceni deu seus primeiros passos dentro do mundo da sétima arte quando, ainda muito jovem, começou a escrever críticas sobre filmes, em 1954. Pouco depois, passou a trabalhar como assistente de direção de peças teatrais.

Durante esse período, entre meados e fim da década de 1950, realiza seu primeiro curta - "Caminhos" (1957) - e, logo em seguida, o documentário "Arraial do Cabo" (1959), este último marcando a primeira parceria com o diretor de fotografia e montador Mário Carneiro.

"Caminhos" lhe garante uma bolsa de estudos de dois anos (1960-1961) no Centro Experimental de Estudos Cinematográficos, em Roma. Lá, em meio aos estudos, Saraceni se torna colega de classe de nomes como Bernardo Bertolucci.

De volta ao Brasil, ele, em companhia de Gustavo Dahl - que também fora seu colega durante os anos de estudo na Itália -, Nelson Pereira dos Santos, Ruy Guerra, Cacá Diegues, Arnaldo Jabor e Glauber Rocha iniciam o que seria conhecido como Cinema Novo. O próprio Glauber costumava atribuir a Saraceni a concepção da frase que traduziria a síntese do movimento: "Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça".

"Porto das Caixas", seu primeiro longa-metragem, rodado em 1962, é considerado por estudiosos como o marco inicial do Cinema Novo. O filme é baseado num argumento de Lúcio Cardoso. A união entre o cineasta e o escritor se repetiria outras duas vezes, em "A Casa Assassinada" e "O Viajante" (1999), filmes que formam aquela que ficou conhecida como Trilogia das Paixões.

Entretanto, antes de adaptar a principal obra de Lúcio Cardoso, o realizador levaria às telas "O Desafio", com Oduvaldo Viana Filho, e "Capitu", uma abordagem mais feminina do personagem de Machado de Assis.

O reencontro cinematográfico de Saraceni com o escritor mineiro se daria no fim dos anos 1960 quando, após idas e vindas durante a adaptação do romance "A Crônica da Casa Assassinada" - o diretor teria chegado a receber recomendações para que o projeto fosse entregue à condução de Luchino Visconti -, ele, Mário Carneiro (fotografia) e o maestro Tom Jobim (trilha sonora) decidiram remontar o trio que esteve à frente de ‘Porto das Caixas.

A eficiente direção de atores de Saraceni, o clima opressivo, soturno, melancólico e onírico garantido pela fotografia de Carneiro e reforçado pela música de Jobim, além do desempenho dos atores - em particular, uma interpretação devastadora de Carlos Kroeber, que viveu o homossexual Timóteo - fez com que a "A Casa Assassinada" se transformasse no filme mais premiado do diretor.

O longa venceu cinco categorias no Festival de Brasília de 1971:  melhor filme, melhor diretor, melhor ator - Carlos Kroeber -, melhor montagem e trilha sonora. Em 1973, a produção arrebatou os prêmios de melhor ator - mais uma vez, Carlos Kroeber - e melhor trilha sonora (Tom Jobim). "A Casa Assassinada" ainda foi indicado à categoria de melhor filme, mas o prêmio acabou com "Toda Nudez Será Castigada", de Arnaldo Jabor.

No mesmo ano, a adaptação de Saraceni ainda conquistaria os prêmios de melhor diretor, melhor ator (Kroeber, novamente), melhor atriz (Norma Bengell), melhor fotografia (Mário Carneiro) e melhor atriz coadjuvante (Tetê Medina) da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA).

Saraceni seguiu em frente, infelizmente lançando filmes com intervalos maiores. Seguiram-se "Anchieta, José do Brasil" (1977), "Ao Sul do Meu Corpo" (1981), "Natal da Portela" (1988), os documentários "Bahia de Todos os Sambas" (1996) e "Banda de Ipanema - Folia de Albino" (2001), até chegar ao derradeiro "O Gerente" (2011).

Peça fundamental para se entender a cinematografia brasileira, Saraceni deixou muitos exemplos de sua habilidade na construção, adaptação e condução de filmes. E entre tudo o que fez, "A Casa Assassinada" permanece como um dos pontos mais elevados e agudos de seu talento.

Filmografia:
2011 - O Gerente - direção e roteiro
2003 - Banda de Ipanema - Folia de Albino - direção e roteiro
2003 - O General - interpretação
1998 - O Viajante - direção e roteiro
1996 - Bahia de todos os sambas - direção
1988 - Natal da Portela - direção, interpretação
1983 - Quadro a quadro, Newton Cavalcanti
1981 - Ao sul do meu corpo - direção e roteiro
1977 - Anchieta, José do Brasil - direção, produção e roteiro
1972 - Amor, carnaval e sonhos - direção, interpretação e roteiro
1970 - A casa assassinada - direção, produção e roteiro
1967 - Capitu - direção, produção e roteiro
1965 - O desafio - direção, produção e roteiro
1964 - Integração racial - direção
1962 - Porto das Caixas - direção e roteiro
1960 - Arraial do Cabo (curta-metragem) - direção
1957 - Caminhos (curta-metragem)

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