Homem sem Passado, O (Mies vailla menneisyyttä), de Aki Kaurismaki (Finlândia/Alemanha/França)
Por Nelson Hoineff
Quem quiser saber sobre o que é O homem sem passado (Mies vailla menneisyyttä, 2002) não vai encontrar a resposta nos tijolinhos dos jornais. Tampouco vai encontrar no cinema, porque este é um filme sobre coisa alguma e ao mesmo tempo sobre muita coisa. Seu personagem principal, o único personagem que permeia todo o filme, sabe-se pelo título, não tem passado. Pode ser um desmemoriado, pode ser alguém cuja história nada tem de importante. Na verdade, é um desconhecido que logo na sua chegada a Helsinki é espancado por marginais até perder a memória.
Construir esse personagem é tão difícil quanto extrair da ação acontecimentos que a definam. Este homem que desce de um trem e chega a uma cidade que claramente poderia ser qualquer outra, pode ser bom ou ruim, sábio ou estúpido, herói ou vilão. Sua face é rude, mas seus olhos nada dizem. Comporta-se como um sofredor, mas sente-se nele a serenidade da paz.
Quando o homem, incapaz de conseguir um trabalho ou buscar algum tipo de ajuda, vai parar numa espécie de invasão, um local onde as pessoas vivem em containers de navio, emerge uma organização social que por algum tempo passa a ser a referência única onde não parece haver referência alguma. Os containeres, que servem de moradia, são administrados por um líder, que fala e age como se estivesse fazendo qualquer outra coisa - e fica claro que se existe algum código a ser decifrado para que as coisas façam sentido, eles começam por ali.
É o líder da comunidade de containeres que estabelece com o recém-chegado uma relação que parece ser capaz de levar a alguma coisa, pelo menos pelos padrões que supostamente devemos esperar - e aos poucos, as pessoas que vão surgindo à sua volta vão se encaixando em sua história. Não elucidam algum mistério de sua vida porque em sua vida não parece haver mistério algum - e ainda que houvesse isso não interessaria a ninguém.
O desconhecido - e todos que passam por sua frente - falam de modo estranho, um tom acima do normal, como se estivessem proclamando verdades eternas nos eventos banais do cotidiano. Falam como se o peso de suas palavras não tivesse correspondência alguma com o peso do que elas significam. E ainda assim, todas essas palavras fazem sentido, não remetem ao absurdo, mas ao que está em seu lugar.
E ainda assim, O homem sem passado, segunda parte de uma trilogia sobre a Finlândia, é de longe o filme mais completo de seu realizador, Aki Kaurismaki, um finlandês que se notabilizou por personagens como os Leningrad Cowboys, Cowboys de Leningrado, um grupo de rock vestido de maneira exótica com topetes que elevavam os de Elvis à milésima potência. Ao lado de seu irmão Mika (que vive ocasionalmente no Brasil e no ano passado realizou um documentário com esse título, Moro no Brasil, sobre as raízes da musica brasileira) Aki é responsável por 20% de toda a produção finlandesa atual e goza de um prestígio internacional (ainda que não traduzido em sucesso) francamente superior ao do mérito de filmes como Os Leningrad Cowboys vão para a América.
Em O homem sem passado, o riso é bem menos fácil que na maioria de suas paródias. A rigor, não há muito riso neste filme, que foi considerado pela Fipresci, a Federação Internacional de Crítica Cinematográfica (já que estamos numa sessão selecionada pela crítica) como o melhor filme produzido na Europa em 2002. O riso fácil, tão presente no resto de sua obra, abre espaço para um sentimento de alegria, que advém do despojamento.
Sem muito que contar, rejeitado pela ex-mulher, hostilizado pelos novos conhecidos, este solitário viajante vai encontrar amor numa melancólica trabalhadora do Exército da Salvação e compreensão nos desempregados que circulam a seu redor. Há uma clara referência chapliniana aqui (Kaurismaki é rico em referências e batizou sua produtora em homenagem a "Alphaville", de Godard). Ele nos indica que na verdade tudo o que possuímos está dentro de nós. Dito assim pode parecer uma assertiva budista, ou a base para um velho filme de Frank Capra (o diretor de Do Mundo Nada se Leva) e não é completamente estranho que filosofias tão diferentes (de Capra e do budismo) estejam presentes num personagem que pouco fala e guia-se exclusivamente pelo acaso. O excluído de Kaurismaki, como os excluídos de Chaplin, fala pouco, mas parece gritar que é pelo acaso, não pela busca, que a vida transita.