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Invasor, O de Beto Brant (Brasil)

Por Eduardo Valente

Dois fatos acontecidos já em 2003 ajudam a entender a relevância de O Invasor no cenário brasileiro. Primeiro, um positivo: o filme foi eleito por um grupo de 40 críticos e teóricos, em recente enquete organizada pela Revista de Cinema, como o mais importante do cinema brasileiro desde o inicio da chamada "retomada" (em torno de 1994) - lembrando que estava concorrendo, por exemplo, com Central do Brasil ou mesmo Cidade de Deus. O segundo fato, profundamente negativo, foi o assassinato do rapper Sabotage, em São Paulo. Revelado para o Brasil com o filme de Beto Brant, sua morte mostra o quanto as fissuras do tecido social brasileiro, que O Invasor (2001) tenta delinear, são profundas e dolorosas.

Lançado no Festival de Brasília de 2001, O Invasor foi o primeiro filme num ano pródigo em projetos que levaram as questões da atualidade nacional para o primeiro plano da discussão no cinema brasileiro, algo que se pedia com constância desde essa retomada. No ano de Cidade de Deus, Ônibus 174, O Príncipe, Uma Onda no Ar e até mesmo Madame Satã (que só é um filme de época para quem o queira entender somente como a biografia de uma figura histórica - o que ele não é), o filme de Beto Brant não foi só o primeiro, como ainda é o que soluciona de forma mais abrangente as questões que tematiza, tanto na sua forma quanto no seu conteúdo.

A realidade surge no filme, discutida e onipresente, mas não porque ele se pretenda a priori como um tratado sobre ela, e sim porque ela é tão forte que torna-se inescapável. O mundo exterior invade a trama pretensamente "policial" assim como o faz o personagem de Paulo Miklos: o verdadeiro "invasor" do filme é o Brasil. Brasil que cisma em surgir nos cantos de cada plano, que cisma em pressionar e assombrar os personagens, que antes queriam ser apenas isso: personagens. É por isso que a principal leitura possível de O Invasor é necessariamente alegórica e sócio-histórica, ainda que ele não seja "sobre" isso, mas sim sobre seus personagens e os seus pequenos dramas.

No início, quando Marco Ricca e Alexandre Borges estão urdindo a trama que vai desencadear todo o drama, o filme parece preso a um excesso esquemático que quase o sufoca, entre o bom rapaz atormentado e o menino mau e sem escrúpulos. Parece ser mais um do tanto que já vimos, no máximo um asséptico mea culpa da burguesia assombrada. Mas, quando o personagem de Miklos "invade" esta trama que não é dele, se dá a mágica do filme. A múltipla interpretação deste conceito de invasor nos parece mais interessante até mesmo neste sentido dramatúrgico: não era para aquele personagem ter presença nesta trama de amizades, trações e ambições entre nossa "realeza". Ele seria o seu Rosencrantz ou o seu Guildenstern, ou seja, simplesmente o braço que executa uma ação, mas não possui direito a diálogos. Tudo no filme até aquele momento indicava isso (tanto que inteligentemente Brant não mostrava nem o rosto do personagem).

Mas, símbolo de uma necessária alteração na dramaturgia e de uma situação social nacional, o fato é que não se consegue mais deixá-lo de lado simplesmente "cumprindo sua função". Ele quer mais. Ele passou tempo demais assistindo a filmes, novelas e comerciais na TV que vendiam para ele a realidade a qual ele não tinha direito. Pois hoje ele deseja ser aquilo que lhe foi vendido como o "ideal a ser atingido". Ele também acha que merece um pedaço da torta, e quem vai negá-lo? O Mais fascinante índice da atualidade deste retrato é que a luta de classes nele encontra-se transmutada. Ou seja: não se trata mais de um confronto, o personagem de Miklos não quer derrubar a ordem burguesa para se instalar revolucionariamente no poder. Ele quer apenas passar a ser burguês também.

Se o filme de Brant não ignora a realidade brasileira, ele também não pretende filmá-la como se fosse um dos "manos". Não pretende solucionar e qualificar de cima para baixo uma situação muito mais complexa do que poderia conseguir, tanto quanto não a pode mais negar. Fica claro no filme, e esta é uma enorme qualidade, que o universo do cineasta é o universo dos personagens da camada mais abastada da sociedade: academias de ginástica, boates, apartamentos e empresas nos Jardins, Ali a câmera "está em casa". Invadida pela periferia que a cerca, ela até se vê obrigada a fazer duas incursões a este outro universo, mas em ambas assume um tipo de olhar igualmente "invasor". O cinema brasileiro é o invasor de sua própria realidade, e precisa assumir isso.

O Brasil precisa aprender a se questionar de novo, a se olhar de novo. Se o cinema brasileiro ainda aspira a qualquer relevância, esta é sua única opção para fugir da assepsia que ameaçava sufocá-lo. Porque a única certeza, como canta o rap no final do filme, e: a bomba vai explodir.

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