Longe do Paraíso (Far from heaven), de Todd Haynes (EUA/França)
Por Marcelo Janot
Ao contrário de cineastas que buscam inspiração em outras obras cinematográficas mas deixam a cargo da crítica e do público a tarefa de estabelecer associações entre os filmes, Todd Haynes desde o início avisou que Longe do Paraíso (Far from heaven, 2002) foi idealizado como uma homenagem ao diretor dinamarquês de carreira americana Douglas Sirk (1900-1987), que inscreveu seu nome entre os principais realizadores de melodramas na década de 50. Em Longe do Paraíso, a influência de Sirk está presente em quase todos os detalhes do filme: na fotografia anti-naturalista, trabalhada de forma a buscar efeito parecido com o Technicolor, nos figurinos, na cenografia (a cargo de Mark Friedberg, o mesmo que fez um trabalho diferente mas primoroso de reconstituição dos anos 70 emTempestade de Gelo, de Ang Lee), na música, nas interpretações e no tema, que trata de conflitos no mundo idealizado da perfeita família americana dosfifties - algo parecido com Tudo O Que O Céu Permite (1956), de Sirk, em que Jane Wyman era uma viúva que se apaixonava pelo jardineiro bonitão (Rock Hudson). Haynes revelou que outra de suas inspirações foi Na Teia do Destino (1949), de Max Ophuls, filme do qual ele chegou a copiar a cena em que Joan Bennett chora no fim.
Esteticamente, o filme é igualzinho a um melodrama de Sirk, só que tratando de forma mais aberta temas-tabu, como a dona de casa americana exemplar que se interessa pelo jardineiro negro e descobre que seu marido é gay. O mais interessante, no entanto, é estabelecermos a relação entre Longe do Paraíso e a obra do próprio Todd Haynes. Todos os seus longas anteriores - Veneno(1991), Safe (1995) e Velvet Goldmine (1998) - tratam, em maior ou menor escala, de temas como a tolerância, o desejo e o desajuste social. Como Haynes é homossexual assumido e seus filmes falam de temas ligados ao homossexualismo (mesmo que metaforicamente, caso de Safe), ele volta e meia é rotulado equivocadamente como "cineasta gay", o que é limitador demais para alguém que faz um cinema tão rico em leituras e significados.
Embora cumpra bem o seu papel como drama romântico, Longe do Paraíso se torna mais saboroso se encarado como uma espécie de prequeldo excelente Safe (que foi lançado em vídeo no Brasil como A Salvo e andou sendo exibido no Telecine com o estranho título Mal do Século). São inúmeras as semelhanças entre os dois filmes. EmSafe, ambientado em meados dos anos 80, Juliane Moore também interpreta uma dona de casa americana que leva uma vida aparentemente perfeita ao lado do marido e do filho. Moram numa casa de sonhos no subúrbio de Los Angeles e são admirados por seus pares. O sexo com o marido é burocrático, mas sua maior preocupação é com a cor do novo sofá que comprou para a sua sala. Até o momento em que ela se descobre portadora de uma doença misteriosa, provavelmente causada pela poluição da cidade, e sem encontrar respostas na medicina tradicional, vai buscar tratamento num grupo que promete a cura através do isolamento social numa comunidade alternativa. Esta espécie de seita é liderada por um portador do HIV, cujo discurso messiânico remete à farsa da fórmula de auto-ajuda vendida pela sociedade americana a partir dos anos 80. Ao invés de melhorar, ela só vai ficando mais debilitada fisicamente, e termina o filme vivendo em um iglu, em plena ensolarada Los Angeles.
A partir de Safe, é mais fácil entender o que Todd Haynes procura transmitir com Longe do Paraíso: a noção de que, apesar da autoproclamada queda das barreiras sociais e raciais nos EUA, o preconceito e a incapacidade de saber lidar com a diferença é algo que continua se propagando como um vírus que assume diferentes formas. Em Longe do Paraíso, durante uma festa, uma personagem comenta na frente de um garçom negro que não há negros na cidade em que vivem. Em Safe, durante o jantar da família, servido pela empregada latina, o menino mostra aos pais a redação que fez na escola, sobre o perigo que a presença de negros e latinos em Los Angeles representa. Esta invisibilidade das minorias se soma a outro aspecto determinante: a dificuldade de se exprimir, perante uma sociedade que privilegia as aparências e a norma, os nossos desejos mais profundos.
Como se vê, pouca coisa mudou, e se Haynes futuramente quiser fazer um filme ambientado no século 21 sobre as mesmas questões, provavelmente chegará às mesmas conclusões, não importa se utilizando o experimentalismo estético de Veneno, o artificialismo de Longe do Paraíso ou a assepsia e o minimalismo de Safe. Não é qualquer cineasta que consegue se reinventar através da repetição. Palmas para ele.