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Madame Satã, de Karim Aïnouz (Brasil)

Por Marcelo Janot

Madame Satã (2002) é um filme extraordinário e surpreendente já desde o momento em que ele subverte expectativas: ao invés do óbvio retrato biográfico de um personagem cuja vida renderia dez longas-metragens, o diretor e roteirista Karim Aïnouz corajosamente optou pelo recorte de um momento pouco "cinematográfico" da vida de João Francisco dos Santos. Se não descreve a trajetória de Madame Satã, ajuda a entender o Brasil dos anos 30 e faz a ponte com o Brasil de hoje, que se reconhece na tela em Ônibus 174 e Cidade de Deus, outros dois importantes filmes sobre exclusão social.

Preto, pobre, pederasta, "sujeito de pouca inteligência", é o que se lê nos termos de acusação de um dos inquéritos policiais contra ele, na cena que abre o filme. João Francisco dos Santos, um brasileiro. Setenta anos depois, a gente percebe que socialmente pouca coisa mudou. As bichas da Lapa e os malandros do morro continuam marginalizados e apanhando da polícia. O que caiu por terra foi o romantismo da navalha, substituída pelas granadas e metralhadoras. 

Tudo o que se vê do Rio de Janeiro daquela época surge através dos sentimentos de João Francisco. O futuro Madame Satã é apresentado como um personagem cheio de contradições, mas jamais um "anormal" ou "desviado" por conta de sua opção sexual, e isso acaba se tornando um dos pontos altos do filme. Muito antes até do movimento de orgulho negro, ele assumia um raro orgulho gay. O João Francisco vivido magistralmente pelo ator Lázaro Ramos derruba totalmente o estereótipo da bicha histérica, feminina e fragilizada, presente em cena na figura de sua "companheira" Tabu (Flávio Bauraqui). O contraste só vem acentuar a forte personalidade do personagem, captado por uma câmera que dele só se afasta o suficiente para atestar sua grandeza perante a vida e a sociedade à qual se opunha, e da qual queria fazer parte entrando pela porta da frente. 

Trabalhando com três gerações de grandes atores (Emiliano Queiroz, Marcélia Cartaxo e Lázaro Ramos), Karim Aïnouz mostra uma segurança surpreendente para um diretor estreante, parecendo ter total controle sobre seu filme. A direção de fotografia do mestre Walter Carvalho (Lavoura Arcaica, Central do Brasil, etc), em conjunto com a direção de arte de Marcos Pedroso (Bicho de Sete Cabeças), tem um resultado antológico, atingindo um grau de profissionalismo e expressão artística de deixar o cinema brasileiro cheio de orgulho. A precisão cirúrgica com a qual eles trabalham a textura cromática e a câmera inquieta atende perfeitamente à opção estética do filme. Madame Satã é lírico, marginal, sujo e perfumado ao mesmo tempo. É forte nos momentos explicitamente gays, causando o estranhamento pretendido com beijos de língua e corpos entrelaçados sob o eco do silêncio, sem precisar recorrer a imagens fálicas. E é delicado e sublime nos momentos musicais. 

Não é, entretanto, um filme arrebatador, o que parece também uma opção dramatúrgica de Karim Aïnouz. A ausência de um clímax conclusivo, e o fato de o personagem despertar mais sentimentos de simpatia e admiração do que de pena ou compaixão fazem com que Madame Satã não busque a cumplicidade pela lágrima fácil, e sim pela reflexão. 

O território está livre para que se filme a biografia do malandro a partir do momento em que Madame Satã termina. Alguém se candidata? Difícil vai ser superar o resultado deste aqui.

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