Meu pai
Por Ricardo Largman
Entre fantasia e realidade
Difícil afirmar quem mais se angustia diante da constatação de sinais de demência no octogenário Anthony: se a sua filha, Anne; ou se o próprio Anthony. Ou se, talvez, e mais provável, o espectador. Porque o retrato cinematográfico da doença é profundamente real — e, por isso mesmo, duro, cortante, por vezes incômodo. Há uma inquietação sutil, mas que permeia toda a narrativa, fazendo-a oscilar entre o delírio e o factual. A sensação é aflitiva, mas necessária, como só o bom cinema consegue produzir.
Distinguir a fantasia da realidade é o desafio que o dramaturgo francês Florian Zeller, corroteirista (ao lado de Christopher Hampton) de “Meu pai”, propõe nesta sua notável e festejada estreia como diretor nas telas de cinema. Com habilidade singular para um “novato”, Zeller constrói uma trama labiríntica, com uso de elipses e de uma sequência de cenas que remetem à famigerada Escada de Penrose. Anthony ainda se acha capaz de morar sozinho em seu apartamento, em Londres, e dispensa os cuidados da filha, que percebe suas intermitentes confusões mentais e insiste em contratar uma cuidadora para ele. Mas nada disso pode ser, ou é, aquilo que parece — não é possível estabelecer início, meio e fim, tampouco o que está dentro ou fora da cabeça caótica do protagonista.
O filme evolui numa espiral crescente. Gradualmente, Anthony se transforma: passa de um homem com evidente autonomia, de conduta e elegância insuspeitas, a um senhor de idade irascível e frágil. Zeller trabalha a transição com delicadeza e enorme sensibilidade. E não por acaso. Ele é o autor da peça “Le père”, escrita e encenada em 2012, por sua vez inspirada em uma dramática experiência pessoal. Quando ele estava com 15 anos, sua avó — a quem considerava sua “segunda mãe” — revelou os primeiros indícios de Alzheimer. Como lidar com “perdas” cada vez mais recorrentes? Como continuar a amar e cuidar de alguém que simplesmente já não o reconhece? É esse o mergulho pungente, definitivo, que Anthony, Anne e cada espectador têm de fazer.
Meu pai (The father), de Florian Zeller (Reino Unido/França/EUA, 2020). Com Anthony Hopkins e Olivia Colman.
Drama. Sinopse: Um homem recusa toda a ajuda da filha à medida que envelhece. Ao tentar entender as mudanças nas circunstâncias, ele começa a duvidar dos entes queridos, da própria mente e até da estrutura de sua realidade. 100 min. 12 anos.