Cidade dos Sonhos (Mulholland Drive), de David Lynch (França/EUA)
Por Pedro Butcher
Em 1951, Marcel Carné dirigiu uma adaptação para o cinema da peça "Juliette ou a Chave dos Sonhos", de Georges Neuveux. Nela, um homem (Gérard Phillipe) encontra refúgio em seus próprios sonhos depois que comete um crime passional. Primeiro Neuveux e depois Carné fizeram uma releitura do cinema surrealista adicionando algum lirismo e romantismo, com toques de ingenuidade.
David Lynch, de certa forma, propõe uma releitura semelhante em Cidade dos Sonhos (Mulholland Drive, 2001)- um filme essencialmente onírico e repleto de romance e poesia, ainda que quase nenhuma ingenuidade.
Para além do surrealismo, porém, Lynch optou por um tratamento quase realista do sonho como matéria prima para o cinema. Ele está interessado em processos mentais, filmando o interior de uma mente humana em estado de tal confusão que fato, memória, sonho e alucinação se embaralham sem distinção óbvia. Mas Lynch não se utilizou do sonho e do inconsciente como subterfúgio para um "vale-tudo" pós-moderno. Cidade dos Sonhos tece uma lógica interna de sentido formal profundo.
Como em "Juliette ou a Chave dos Sonhos", também há, no filme de Lynch, um crime de paixão. No caso, paixão homossexual, entre duas mulheres: uma loura, que desejava fazer a vida como atriz em Los Angeles; e outra morena, misteriosa, que na maior parte do filme aparece desmemoriada. Uma delas está (ou estará) morta. Qual delas é um dos enigmas do filme.
Da forma como se apresenta, Cidade dos Sonhostraz uma infinidade de camadas. Há, num primeiro plano, a pura experiência sensorial: a projeção chega ao fim e é difícil afastar aquela desagradável sensação de ter passado por um pesadelo. Um lindo pesadelo. Mas existem, também, as interpretações que se desencadeiam dessa experiência. Parte da graça dos sonhos, afinal, reside nessa possibilidade.
Quando lançou Cidade dos Sonhos no cinema, David Lynch divulgou algumas dicas para o espectador. Elas não servem, de forma alguma, para se compreender melhor a história. Melhores que isso, são como pontos indicativos em um mapa, numa estrada de imagens sinuosas. Nessas dicas, Lynch chama atenção para personagens (Tia Ruth, por exemplo, onde ela está de fato?), frases (o que diz o caubói quando entra no quarto?) e seqüências (principalmente as que se passam num típico dineramericano). Existem ainda dois elementos que merecem atenção especial. Um deles é uma chave azul; e outro é uma seqüência inteira (a cena do jantar, ao fim do filme). Com atenção a esses elementos, o desfrute de Cidade dos Sonhos é infinitamente potencializado.
Nesse grande painel mental, o cineasta se reafirma como um autêntico herdeiro de Hitchcock. Mas não um como um criador de pastiches e como um poeta, criador de formas que toma como matéria-prima o inconsciente, os sonhos e pesadelos humanos.
Godard, outro poeta do cinema, já havia dito que o belo em Hitchcock não está nas tramas, quase sempre absurdas se observadas de um ponto de vista rigorosamente "lógico", mas sim em imagens inesquecíveis como um copo de leite iluminado (Suspeita), o detalhe de um coque de cabelo (Um corpo que cai) ou um crime visto de um par de óculos quebrado (Pacto sinistro). O mesmo raciocínio vale para David Lynch. Em Cidade dos Sonhos, ele cria algumas das imagens (e, vale dizer, sons) mais belos de sua carreira.
Mas há uma diferença crucial entre os dois cineastas. Se Hitchcock buscava o controle absoluto do universo, David Lynch busca o descontrole. Confia mais na intuição do que na razão e quase sempre arremessa seus personagens no inesperado.
Curiosamente, o contrário acontece no trabalho anterior do cineasta, o road movie História real. Neste, a insegurança está no lar do protagonista Alvin Straight e a segurança ele vai buscar na estrada em linha reta, onde encontra amparo e conforto. Em Cidade dos Sonhos, Lynch retoma a sinuosidade de Estrada perdida, de 1997. Ambos foram filmados em Los Angeles, têm como figuras centrais uma loura e uma morena (Hitchcock, de novo), são marcados por trocas de identidade e, principalmente, dominados pela atmosfera do pesadelo.
Numa definição curta e grossa, Cidade dos Sonhosé o pesadelo (ou o delírio suicida) de uma candidata a atriz de cinema. É o embate da utopia da fama, a característica mais essencial e sedutora de Los Angeles. O filme de Lynch se passa na fronteira entre a máscara das ilusões e a brutalidade dos fatos. Ao narrar o sonho de uma jovem que um dia chegou a Los Angeles para virar estrela, Lynch transforma esse sonho num pesadelo tão real para ela como para o espectador. Um pesadelo cuja realidade só existe na tela e que tem, no cinema, sua alma.