Melhor filme: Ninguém Pode Saber (Dare mo shiranai), de Hirokazu Kore-Eda (Japão)
Por João Luiz Vieira
Baseado num fato real ocorrido em 1988, Hirokazu Kore-Eda se distancia do docudrama para,com o mesmo desejo de um cinema da verossimilhança, construir com total domínio da linguagem cinematográfica uma ficção que toca o espectador tanto pelo lado sensorial, quanto emocional e racionalmente.
Durante seis meses, quatro crianças irmãs de pais diferentes, abandonadas pela mãe num apartamento em Tóquio, com pouca comida e algum dinheiro, têm que se virar sozinhas sob a liderança do irmão mais velho, Akira, de 12 anos. Como os outros três irmãos entraram no prédio escondidos, as crianças não haviam sido registradas, não freqüentavam escola e não poderiam aparecer na rua, sob pena de serem obrigadas a se mudar dali, já que o apartamento só permitia famílias com filho único. Tirando Akira, os outros três eram invisíveis à sociedade e nessa condição tinham que permanecer.
Kore-Eda privilegia a construção de olhares que ultrapassam a identificação primária entre espectador e personagens e acentuam simultaneamente emoção e observação-a câmera se desloca do olhar de uma das crianças para uma autonomia de observação e permanece sobre momentos e objetos que ultrapassam o caráter descritivo das ações. A sensação crescente de intimidade com aquele mundo é forte, graças também à excepcional habilidade do diretor em dirigir crianças.
Às vezes parecendo distanciado, sem grandes lances excessivamente dramáticos-o uso da música é de uma sobriedade ímpar-este filme é uma grande contribuição japonesa para a filmografia que tematiza uma situação cada vez mais comum nos tempos globalizados-a infância desassistida e a tragédia das crianças de rua mundo afora, apagando fronteiras entre nações desenvolvidas e o ainda chamado terceiro mundo. Níveis de desemprego cada vez maiores, o narcotráfico, o trabalho infantil escravo, a prostituição e o turismo sexual são alguns desses sintomas que autenticam representações de doenças sociais e outras formas de violência. Questão de natureza transnacional, o destino global de crianças de rua assume uma eloqüência radical ao nos confrontar com o caráter distópico do tempo presente e de um futuro próximo.
De Los Olvidados (1950) a Pixote (1980), de Salaam Bombay (1988) a Cidade de Deus (2003), dos colombianos RodrigoD: NoFuturo (1990) e A Vendedora de Rosas (1998) a este filme japonês, entre muitos outros títulos, platéias internacionais vem se familiarizando com este outro social que aproxima diferentes contextos socioeconômicos e afirma a existência de terceiros mundos no primeiroe vice-versa. As cidades são intercambiáveis e seus protagonistas funcionam como quaisquer sujeitos oprimidos não importa se em Bogotá, Rio, Detroit, Calcutá, Paris, ou Tóquio.