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Homem Que Não Estava Lá, O (The Man Who Wasn´t There), de Joel e Ethan Coen (Reino Unido/EUA)

Por Rodrigo Fonseca

Falar no cinema escrito, produzido, dirigido e, de certa forma, poetizado petos irmãos Joel e Ethan Coen é pensar, antes de tudo, no conceito de reinvenção. Calma. Não se trata de nenhuma regra de pensar deleuziano ou alguma manifestação da prática semiológica, seja ela à francesa ou à Oswaldo Aranha. Os manos mais criativamente produtivos do cinema americano, que escaparam das patas de aranha do grande cinemão hollywoodiano, têm como hábito saudável em sua linhagem de crias cinematográficas reinventar processos, códigos ou gêneros enrugados pelo tempo. O Homem que Não Estava Lá (The Man Who Wasnt There, 2001) é apenas um dos frutos mais brilhantes dessa união intelectual fecunda e plural.

Ousado. Meticulosamente irônico. Provocativo. Sensual. O último trabalho da dupla pode ser definido de muitas maneiras. A maioria delas ramificações de uma classificação maior que rotula sua condição estilosa: noir. De todos os quinhões de terra em que o latifúndio do cinema americano está dividido aquele que permitiu que John Huston, Howard Hawks (em menor grau) e outros bambas fizessem escola, dissecando suas noções de cinismo e criminologia, o filão negro tomou-se o mais interessante para o paladar dos Coen. De Gosto de Sangue, trabalho que os revelou, até O Homem que Não Estava Lá há uma longa e tortuosa estrada. Nela, eles exercitaram brincadeiras que vão da chanchada policialesca (Arizona nunca mais) à aventura mais radical da tradição grega (E aí, meu irmão, cadê você?). Mas a semente do noir sempre manteve embutida no âmago de ambos. Seja em processo de crisálida. Seja em crescimento escancarado.

Consagrados na rebarba de um furacão estético que sacudiu e reinventou a arte de filmar nos EUA, que foi a obra construída pelos cineastas da geração easy rider (Martin Scorsese, Bob Rafelson, Francis Ford Coppola, Steven Spielberg e outros), Os Coen herdaram somente o bagaço dá pujança revolucionária que alimentou seus antecessores. A tônica da vitalidade deles era redescobrir os códigos mais primais de Hollywood e, com isso, resgatar sua majestade, adaptando-a para tempos menos atraentes que os glamourosos anos 30 e 40.

Foi daí que Joel e Ethan encasquetaram com o noir e resolveram fazer dele sua maneira de experimentar caminhos e romper com o status quo de sua sociedade. Da primeira à última seqüência, O homem que não eslava lá serve como uma espécie de manifesto para a histórica necessidade que os dois têm de querer romper com a pasmaceira que agarrou o pescoço e sufocou a arte dos EUA. Sua história, que envolve pilantragem, traição e assassinatos, como todo bom polar noir, tem como trunfo maior um perdedor por natureza que é encarregado de assumir as vias de herói trágico: Ed Crane, o segundo barbeiro de um salão de cabeleireiro furreco vivido de maneira esplendorosa por Billy Bob Thornton que, injustamente, sequer foi indicado ao Oscar pelo papel. Crane é o estereótipo de tudo o que os americanos aprendem desde criancinha que não devem se tornar no futuro. É covarde, canalha, dissimulado, forçado pelas circunstâncias e escravizado pelo acaso. Só realiza algo sensivelmente diferente quando resolve participar de uma chantagem e, sem querer acaba assassinando o amante de sua mulher.

Pronto! Daí pra diante, o moço se envolve em uma série de confusões rocambolescas, no mais kafkiano estado de coisas tortas. E, pouco a pouco, vai demonstrando ao público que a vida pode ser mais traiçoeira do que a gente pensa que ela é. 

Nessa brincadeirinha cheia de maneirismo e barroquismos formais, os Coen mergulham na essência dos elementos noir. Tal qual processaram em O ajuste final, aproveitam o espaço da tela para enfiar signos que, em desconstrução violenta, revelam fragmentos de um gênero com a solidez de cimento seco. Joel e Ethan deixam, a todo instante, que as peças de seu tabuleiro de xadrez transpareçam vividas aos olhos da platéia de modo a embaralhar sua percepção para o jogo semântico que operam com precisão de ourives.

O peso de O Homem que No Estava Lá na filmografia deles, apinhada de suculentos quitutes de película, artimanha e muita experimentação com imagens do senso comum, está na ordem da suprema excelência. E sua eficiência vai além dos limites da trajetória profissional de ambos. Até hoje, poucos trabalhos na recente história do cinema americano atingiram tanta sofisticação em aspectos técnicos.

Da fotografia preto e branco de harmônica mistura tonal à montagem ágil e tensa, O Homem que Não Estava Lá é uma peça refinada, cujo conteúdo é capaz de ultrapassar as reflexões sobre a canalhice humana engendrada por filósofos, poetas e cronistas de porte de Bocaccio, Voltaire e até Dashiel Hammett. Fora que o show do elenco encabeçado por Thornton, onde se destacam ainda James Gondolfini, Tonv Shalhoub e Frances McDormand, realça ainda mais as pretensões de seus diretores.

Para este ano, os Coen têm outro filho para tirar do berço: Intolerable cruelty, um conto sobre a cobiça de um homem (George Clooney) e a mulher que se coloca em seu caminho, vivida por Catherine Zeta-Jones. É cedo para fazer apostas. Mas se tal produção atingir um terço da qualidade que O homem que não estava lá alcançou, já um lugar cativo no rol dos melhores de 2003 reservado com o nome desses irmãos maravilhosos.

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