O Irlandês
Por Rodrigo Fonseca
Judas está no meio de nós: mãos ao Alto
Sem se deixar abalar pelo fracasso de “Silêncio” (2016), uma necessária, porém acidentada, reflexão sobre a cruzada jesuítica, Martin Scorsese fez da fé – no companheirismo, nas formas de sobrevivência do audiovisual e no Altíssimo – sua Estrela de Belém em seu primeiro projeto de ficção, como realizador, para a Netflix: “O irlandês” (“The irishman”). Cinco indicações ao Globo de Ouro e elogios de múltiplas vozes coroaram esse novo trabalho, que o realizador, aos 77 anos, encara como um possível “filme do adeus”, algo que decrete sua saída das telas. Há já novas ideias em andamento em seu trabalho, como “Killers of the flower moon”. Mas há uma sensação de paúra diante da finitude que embota o peito do diretor. Um diretor cujos filmes, muitas vezes, banham-se nas águas da penitência católica, em uma conexão com seu passado cristão de ítalo-americano, que pairou sobre a lírica folk, no primeiro decênio de sucesso de sua carreira, ao buscar na poética de Kris Kristofferson uma tradução de si mesmo.
Há uma música, falada – e não cantada –, no início de “Taxi driver” (Palma de Ouro de 1976) que diz: “He's a prophet, he's a pusher/ He's a pilgrim and a preacher, and a problem when he's stoned/ He's a walkin' contradiction, partly truth and partly fiction”. Se fosse necessária uma definição quase metafórica para o melancólico “O irlandês”, vitaminado por uma atuação em temperatura máxima de Joe Pesci, essa estrofe da canção “The pilgrim, Chapter 33” seria a escolha precisa. Nada é mais antitético do que Frank Sheeran, caminhoneiro, ex-militar e matador que devolve a Robert De Niro uma grandeza que parecia, há muito, perdida em sua forma de atuar. Ao mesmo tempo em que é a retidão em pessoa, o “homem que pintava casas” – como ele é definido entre os mafiosos e magnatas do sindicalismo para quem empresta seu gatilho –, Frank põe sua trilha trágica em dúvida diante do fardo de ter que eliminar um amigo e patrão, o líder sindical Jimmy Hoffa (Al Pacino). É caninamente leal, mas late quando o chefe desrespeita sua posição de servo. E é, como o personagem dos versos do (há muito) sumido Kristofferson, um profeta... o profeta de sua própria sina e da moira de um mundo de imigrantes europeus que, entre guerras, encontraram na América o Eldorado.
O Irlandês (The Irishman), de Martin Scorsese (EUA, 2019). Com Robert De Niro, Al Pacino, Joe Pesci.
Drama. Sinopse: Conta a história de Frank "The Irishman" Sheeran, um sindicalista e veterano da Segunda Guerra Mundial que se torna num assassino para a máfia. 209 min. 16 anos.