Ônibus 174, José Padilha (Brasil)
Por Carlos Alberto Mattos
Ônibus 174 (2002) é uma aula de documentário. José Padilha e sua equipe partiram do material tosco captado pelas TVs durante as cinco horas do seqüestro que paralisou o país na tarde de 12 de junho de 2000 para compor um painel aprofundado das contradições que geram a violência urbana brasileira. O filme expande o contexto e revela detalhes desconhecidos do fato, enquanto reproduz a tensão vivida pelo seqüestrador Sandro Nascimento e os reféns do coletivo que teve sua rota interrompida no meio da Rua Jardim Botânico. Assiste-se ao filme roendo as unhas e exercitando o cérebro.
Faltou somente registrar como o país acompanhou, igualmente estarrecido, os acontecimentos pela televisão. O episódio antecipou, a nível nacional, a grande angústia da aldeia global de 11 de setembro do ano seguinte. De qualquer forma, a mídia desponta como um dos maiores "personagens" do filme. A importância atribuída pelo ex-menino de rua à encenação do desespero, sua consciência do papel da televisão e as referências ao cinema são fatores indissociáveis da tragédia. O material da TV é reeditado e reinterpretado à luz de novos depoimentos de reféns, policiais e "explicadores" como Yvonne Bezerra de Melo e Luiz Eduardo Soares, este com um arrazoado iluminador sobre a busca de "visibilidade" pelos excluídos.
Os maniqueístas o apontam como "o anti-Cidade de Deus". Mas Ônibus 174 só faz mostrar como o cinema é rico em formas de abordagem da desordem social, cada uma brilhante e penetrante a seu modo. Em lugar de opor um filme ao outro, devemos encontrar sua complementaridade, na medida em que dissecam, em minúcias, a mecânica da violência numa cidade como o Rio de Janeiro. Sandro Nascimento, um dos sobreviventes do massacre da Candelária, vai cumprir o seu destino de exterminado sete anos depois. Mas o filme não o vitimiza nem o vilaniza simplesmente. Toda a complexidade dos fatos se faz presente na recuperação de sua história pessoal, sua auto-mitificação como endemoninhado, as contradições no relato sobre a morte da mãe etc.
Vencedor do prêmio da crítica nacional e internacional na Première Brasil do Festival do Rio BR, o filme erige-se em modelo de documentário-reportagem, redimensionando o fato mesmo para quem o viveu intensamente e julgava conhecê-lo de trás para frente. Assistir a Ônibus 174 é um dever cívico que se impõe a todo cidadão interessado em ser algo mais que um passivo consumidor de telejornais. E, embora não se possa falar aqui em prazer ou entretenimento, cabe ressaltar que se trata, igualmente, de uma forte experiência emocional.