Pântano, O (La Ciénaga), de Lucrecia Martel (Argentina/França/Espanha)
Por Daniel Schenker Wajnberg
Diante da constatação de que o espectador "vivencia" as sensações das personagens - os cabelos ressecados pelo cloro da piscina, as peles curtidas de sol e repletas de feridas, o peso do calor e a atmosfera ameaçadora do instante anterior ao início de uma tempestade -, Lucrecia Martel consegue, em O Pântano (La Ciénaga, 2001), romper a tradicional barreira entre obra e público e, feito dificílimo, materializar o impalpável na tela grande, possivelmente a operação artística mais moderna do cinema contemporâneo.
Ao vazarem para a platéia, as impressões se desprendem do plano ficcional e passam a ser compartilhadas por personagens e espectadores. O resultado não é meramente reiterativo. Contaminada, a platéia não perde autoria no diálogo criativo. Ao contrário, tem mais oportunidade de exercer a subjetividade interpretativa a partir do momento em que sua passiva posição de voyeur é deslocada rumo a uma jornada desestabilizadora.
Não por acaso, a promiscuidade (aqui destituída do julgamento moral normalmente associado a este termo) atravessa o flagrante de duas famílias repletas de integrantes arruinados e imersos na falta de privacidade da organização coletiva. A passagem de um garoto lavando o sangue de uma ferida numa pia abarrotada de louça é apenas uma entre as muitas evidências de corpos primitivos, desreprimidos e abandonados.
O Pântano aborda seres humanos em total letargia. Não parecem mortos, mas mergulhados num profundo torpor. O estado da piscina da casa onde se passa a maior parte da "história" é bastante revelador do estado interno de cada um. "A piscina está imunda. Há anos, o filtro, a bomba, nada funciona", dizem. É à beira dela que se desenrola uma das mais perturbadoras seqüências, na qual diversas pessoas arrastam cadeiras pelo chão produzindo um som que dá a nota exasperante do filme, e uma mulher, bêbada, caminha e cai em cima dos cacos de um copo, deixando no chão uma mistura de vinho e sangue. A câmera, trôpega, se faz presente, mas não como um recurso formal e sim como tradutora da condição psicofísica das personagens.