Por Marcelo Janot
Filme que não se encerra na tela
“Que horas ela volta?” não tem nenhuma ousadia formal que impeça sua apreciação por um público mais amplo. Mesmo aqueles que enchem os cinemas apenas para prestigiar a mera reprodução de caricaturas e estereótipos do mais raso humor televisivo irão apreciar a interpretação naturalista e bem-humorada que Regina Casé faz de um elemento enraizado na sociedade brasileira: a empregada doméstica clássica, aquela que é “praticamente da família” e não se sente escravizada.
A diretora e roteirista Anna Muylaert certamente conviveu ou convive com muitas Vals, a personagem de Casé. O diretor chileno Sebastian Silva também: em 2009 ele dirigiu “A criada”, inspirado em suas próprias memórias em casa de classe média alta. No filme chileno, o que está em pauta não é a representação dos conceitos de vilania e vitimização dentro da relação profissional estabelecida, mas, sim, o que a presença daquele ser tão próximo e ao mesmo tempo tão distante da vida da família significa tanto para a empregada quanto para os patrões.
O filme de Muylaert vai pelo mesmo caminho, com menos sutileza no desenho da personagem da patroa, que aos poucos assume o papel da “perua malvada da elite brasileira”. Quem cria uma ruptura na rotina da casa é a filha de Val, vinda do interior do país para fazer vestibular para arquitetura. E aí “Que horas ela volta?” passa a ganhar uma leitura política e social mais ampla, que poderia significar uma tremenda armadilha panfletária, da qual ele felizmente escapa.
A insinuação de que a nova geração de nordestinos possa concorrer de igual para igual com a elite paulistana por uma disputada vaga na USP não está atrelada ao sistema de cotas ou a algum benefício assistencialista, e sim à meritocracia. Enquanto o filho dos patrões fuma maconha o dia inteiro, a filha da empregada estuda e, por isso, obtém notas melhores. É implícita, embora nem tão sutil, a sugestão de que o jovem que até então era obrigado a seguir o caminho dos pais pobres largando os estudos para se aventurar em subempregos agora pode percorrer um caminho seguro até a faculdade, mesmo com as reconhecidas deficiências no ensino médio e fundamental.
Se o filme poderia ganhar uma leitura com mais camadas de reflexão, seria no aprofundamento das relações entre os patrões. O desespero do patrão para fugir da letargia que lhe causa a mais profunda infelicidade, a despeito de todo o conforto material, não encontra correspondência à altura nos personagens esquemáticos de sua mulher e seu filho. É como se nada pudesse servir de obstáculo ao brilho de Regina Casé, que domina a cena e oferece ao menos um momento sublime: seu andar sobre as águas de uma piscina semivazia é o correspondente ao que faz Chauncey, o jardineiro alienado vivido por Peter Sellers, no final poético de “Muito além do jardim”.
“Que horas ela volta?” poderia ter acabado ali naquela cena, porque é o tipo de filme que não se encerra em sua estrutura de início-meio-fim. Mas seu maior mérito é mesmo o de estender a discussão para o além-sessão, mostrando que há um caminho alternativo ao entretenimento idiotizante.
Que Horas Ela Volta? – Brasil, 2015 - Direção: Anna Muylaert – Roteiro: Anna Muylaert – Produção: Anna Muylaert, Débora Ivanov, Fabiano Gullane, Gabriel Lacerda - Fotografia: Bárbara Álvarez – Montagem: Karen Harley – Elenco: Regina Casé, Camila Márdila, Karine Teles, Michel Joelsas, Lourenço Mutarelli, Luis Miranda – Duração: 112 minutos.