Retrato de uma jovem em chamas
Por Gilberto Silva Jr.
O lugar do olhar
A realizadora Céline Sciamma, desde sua estreia com “Lírios d’água” (2007), vem construindo sua carreira com perfis marcantes de personagens femininas que se impõem perante sua feminilidade e sexualidade. Passando por “Tomboy” (2011) e “Garotas” (2014), Céline direcionou seu foco para figuras na adolescência ou na transição para essa fase. “Retrato de uma jovem em chamas” marca uma inserção de protagonistas adultas em sua filmografia. Não casualmente vemos nesse filme, que foge de uma abordagem mais despojada, a opção por um maior rigor narrativo, um ponto de transição. Fica evidente seu amadurecimento artístico, que acompanha igualmente o processo de amadurecimento de suas personagens.
“Retrato de uma jovem em chamas” nos traz uma onipresença das mulheres em cena. Figuras masculinas aqui são não apenas raras, mas também de uma passividade gritante. As quatro mulheres através das quais o filme se desenvolve constroem em si todo um panorama que concentra uma infinidade de possibilidades na representação de relações sociais e afetivas.
Desde a sua primeira aparição, a artista Marianne (Noémie Merlant) se mostra uma enfrentadora ativa dos padrões impostos. Por sua vez, Héloïse (Adèle Haenel), antes mesmo de surgir em cena, já revela um temperamento não conformista diante dos papéis esperados. Sua mãe, a Condessa (Valéria Golino), é figura paradoxal, atuando bilateralmente como representante do domínio patriarcal, sem abrir, no entanto, mão de seu poder como mulher no comando. A ausência dessa última dá margem, mesmo que temporariamente, a um espaço libertário, onde Marianne, Héloïse e a criada Sophie (Luàna Bajrami) criam um universo embasado no tripé igualdade-cumplicidade-amor, este último explodindo na atração carnal e espiritual que floresce entre a artista e o seu objeto.
As relações, especialmente entre Héloïse e Marianne, são sempre estabelecidas através de trocas de olhares, que funcionam como múltiplos vetores das sensações e sentimentos das personagens. Ao posar para a artista, Héloïse enuncia uma fala que parece fornecer a chave para essa opção narrativa por parte da diretora: “Estamos no mesmo lugar. Se você me olha, para onde será que eu olho de volta?” Vemos aqui que, com toda a propriedade de vivência sobre o universo que aborda, Céline Sciamma, num tempo em que tanto se discutem questões relativas a um “lugar de fala”, nos apresenta um rigoroso estudo sobre qual seria o “lugar do olhar” nas relações humanas.
Retrato de uma jovem em chamas (Portrait de la jeune fille en feu), de Céline Sciamma (França, 2019). Com Noémie Merlant, Adèle Haenel, Luàna Bajrami.
Drama/Romance. Sinopse: Marianne é uma jovem pintora na França do século 18, com a tarefa de pintar um retrato de Héloïse para seu casamento, sem que ela saiba. Passando seus dias observando Héloïse e as noites pintando, Marianne se vê cada vez mais próxima de sua modelo. 122 minutos. 14 anos.