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Santiago, de João Moreira Salles (Brasil)

Por Marcelo Janot

Quando realizou o documentário "Nelson Freire", em 2003, João Moreira Salles queria celebrar o recato através da maneira como colocava o personagem na tela. Em entrevista concedida na época, disse que "toda vez que você franqueia sua intimidade, você se embrutece. O que é precioso tem que ser guardado entre poucas pessoas". A mesma linha de raciocínio pôde ser notada quando o personagem era Lula, em "Entreatos" (2004). Houve quem achasse que o filme foi simpático ao presidente, outros diziam que os aspectos negativos sobressaíram. Mas nunca se questionou o rigor ético de Salles ao expor a privacidade de Lula, preservando sua intimidade. 

Com Santiago (2007), o diretor se vê as voltas com um desafio ainda maior: ao retomar um material inacabado de 13 anos atrás, de um filme sobre o mordomo de sua família, expõe a própria privacidade, com todos os riscos que isto implica. Afinal, o documentarista pode tentar conduzir o olhar do espectador, mas jamais terá a garantia de que sua visão de mundo será compreendida. Então por que João Moreira Salles assume esse risco? Porque Santiago representa um acerto de contas com o passado, necessário para ele, valioso para nós.

Santiago, o mordomo, tinha obsessão pela pesquisa de dinastias de aristocratas de todas as épocas e civilizações, que deixou catalogadas em calhamaços de páginas datilografadas. Mais do que o trabalho na mansão dos Moreira Salles, era aquilo que significava sua razão de viver. Enquanto filma aqueles montes de papéis, João reflete através da narração: "pensava que sem Santiago, pelo menos pra mim, essas pessoas não existiriam". A importância daqueles duques e condes para o diretor não está nas suas biografias, mas sim no que elas representam na vida de uma pessoa (Santiago) que foi fundamental na sua própria formação.

É aí que se entende porque um filme pessoal e privado como Santiago pode ser tão valioso para nós, espectadores. Ao observarmos como o diretor revisita sua própria história através das memórias do mordomo, fica claro que ele não está usando Santiago como uma espécie de filtro para preservar sua intimidade, mas como uma extensão de si mesmo. O que o filme oferece, portanto, é um convite proustiano a um reencontro com nossas memórias, com um passado sem volta. Mesmo que elas não tenham relação direta com o universo retratado, percebemos que é do vínculo que estabelecemos com pessoas como Santiago e lugares como a mansão dos Salles que escrevemos nossa própria história. Ao equilibrar, com precisão e sensibilidade, os depoimentos de Santiago com suas próprias observações, João conseguiu expurgar os fantasmas que o assombravam como homem e como realizador, transformando aquele incômodo filme inacabado em uma magnífica aula de como materializar o tempo.

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