Cinco depoimentos sobre o mestre Ingmar Bergman
COMEMORANDO O CENTENÁRIO DE BERGMAN, CINCO DEPOIMENTOS SOBRE O MESTRE SUECO
(Publicado originalmente na revista ‘Chaplin’ do Swedish Film Institute e traduzido para o português na edição de 19/11/1996 do jornal O Estado de S.Paulo)
AKIRA KUROSAWA
“Caro Bergman, Gostaria de felicitá-lo pelo seu septuagésimo aniversário. Seu trabalho me toca profundamente cada vez que tenho oportunidade de assisti-lo. Aprendi muito com sua obra e ela me estimulou. Gostaria de vê-lo com boa saúde para que pudesse criar para nós outros filmes maravilhosos. No Japão havia um grande artista chamado Tessai Tomioka que viveu na Era Meiji (final do século 19). Esse artista pintou muitas telas magníficas quando era jovem, e quando atingiu os 80 anos de idade, voltou, de repente, a pintar quadros que eram muitos melhores que os anteriores, como se ele mesmo estivesse desabrochando. Sempre que vejo suas telas, compreendo, em profundidade, que o ser humano não é capaz de criar obras verdadeiramente boas antes de atingir os 80 anos. O ser humano nasce bebê, se torna menino, atravessa a juventude e finalmente volta a ser um bebê antes de finalizar sua vida. Esta é, na minha opinião, a maneira ideal de viver. Acredito que você concordaria que o ser humano se torna capaz de produzir trabalhos puros, sem qualquer restrição nos dias de sua segunda infância. Tenho 77 anos e estou convencido de que meu verdadeiro trabalho está apenas começando. Vamos permanecer fortes pelo cinema”.
WOODY ALLEN
“Em um nível, existe o grupo geral de cineastas que oferecem ao público bom entretenimento um ano após o outro. Acima deles, existem os artistas que fazem filmes mais profundos, mais pessoais, mais originais, mais excitantes.
E finalmente, acima de todos esses, existe Ingmar Bergman, que é provavelmente o maior artista do cinema, levando-se todos em conta, desde a invenção da câmera de filmar.”
WIM WENDERS
“Parece arrogante querer falar ou escrever algo sobre Ingmar Bergman. Qualquer comentário se torna pretensioso. Seus filmes falam por si mesmos e são poderosos faróis na história do cinema. Eu desejaria para eles nada mais do que isso: que eles pudessem ser liberados de toda a história de sua interpretação para que pudessem brilhar mais uma vez”.
ETTORE SCOLA
“Vi pela primeira vez um filme de Bergman em meados dos anos 50 – não me lembro se era Sorrisos de uma Noite de Verão ou O Sétimo Selo. A profunda e marcante intensidade desse grande autor escandinavo parecia incrivelmente familiar, seu gosto pela lenda e mágica, sua habilidade de capturar o tempo, capturar o mal, o desconforto de seus personagens masculinos, a solidão de suas mulheres – na época tudo isso parecia incrivelmente próximo de mim. Eram qualidades que eu reconhecia no sul da Itália, de onde venho.
Mas à parte desses paralelos surpreendentes, acredito que entre os trabalhos de literatura e arte, música e cinema – poderiam ser 15 ou 20? – que ficam na consciência até se tornarem parte da nossa própria memória (é isto que caracteriza uma obra de arte), entre esses certamente está um dos filmes de Bergman.
Entre as minha próprias memórias está Morangos Silvestres, um filme que também pertence aos que não o viram, mesmo àqueles que sequer ouviram dele falar. É um lugar para a alma.”
MAX VON SYDOW
“Caro Ingmar, Não é preciso lembrá-lo de todas as coisas óbvias. E ainda assim, tenho certeza de que outros falarão delas em detalhe. Estou pensando em todos aqueles momentos mágicos no palco e em volta da câmera de filmar. Momentos em que você nos fazia crer tão claramente que estávamos realizando algo de profundamente significativo e absolutamente necessário.
Poucos diretores demonstraram tanta confiança em seus atores, minimizaram o equipamento em torno deles e enfatizaram o ser humano tão bem quanto você o fez. Tenho enorme gratidão a você por tudo isso – de Jakob a Gregers Werle, de Antonius Block ao prelado. Antonius e seus irmãos inquestionavelmente mudaram a minha vida.
Mas todo o resto – o que não foi imortalizado pela câmera nem analisado pelos críticos de teatro – o que ocorreu à sombra do grande drama fora do mundo de Block e Borge e Vergerus e Winkelman, em um almoço tranquilo de presunto e ovos ou em uma mesa de chá com o pacote de biscoitos e a caixa de chocolate. Os breves momentos que não ficaram para a história, quando desrespeitosamente fizemos piada de Borge e Vergerus, de Fausto e Alceste , de Strindberg e Ibsen – e não menos de nós mesmos. O eco desse riso provavelmente ainda pode ser ouvido em Hovs Hallar, em Skattngbyn e em Faro. Ou as noites de folga em Malmoe, quando você conseguiu discos de Bach e Orff e passava filmes no seu projetor particular: tudo, de And Quiet Flows the Don a Mister Magoo. Esses também foram momentos importantes.
Com o passar dos anos, a importância deles aumentou e eu me lembro deles com frequência. Isso foi quando os grandes pinguins dançavam. Você se lembra de uma vez na ladeira atrás do restaurante do Filmstaden, acabamos uma discussão sobre a vida após a morte nos prometendo que o primeiro que tivesse a oportunidade assombraria o outro? Aguardo ansioso pelo encontro.
Você se lembra da ponte que construímos, Ingmar, numa manhã bem cedo, em Faro, quando a maré estava alta demais para que pudéssemos manter nossos sapatos secos até o local de filmagem de Através do Espelho? A luz estava incrivelmente bela, com a névoa da manhã filtrando toda a sombra e deixando as cores da paisagem aparecerem em toda sua integridade. Todos ajudaram e depois de uma hora e meia o projeto estava terminado e pudemos começar a filmar.
Construímos muitas pontes, Ingmar, entre nós mesmos, e também com o público. E você nos inspirou. Você não receberá flores de mim, mas um terno agradecimento e um voto de boa sorte em sua próxima ponte. E na próxima. E na próxima...”
Nota: Os personagens a que Von Sydow se refere em sua carta são Jacob, na produção teatral de Ingmar Bergman de Lea and Rakel, de Vilhelm Moberg, em 1955, Gregers Werle em Wild Duck, de Ibsen, no Royal Dramatic Theater, em 1972, o cavaleiro Antonius Block em O Sétimo Selo, Johan Borg, em A Hora do Lobo, Andreas Vergerus em A Hora do Amor, e Andreas Winkelman em A Paixão de Anna."