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Centenário de Ingmar Bergman e a representação feminina


Liv Ullmann e Ingmar Bergman

Poucos autores cinematográficos tiveram tanta dedicação ao feminino quanto Ingmar Bergman. A maior parte da obra do diretor sueco é focada na complexidade do que é ser mulher, da condição dela na sociedade e sua singularidade.


Para tentar entender as mulheres no cinema de Bergman, é preciso voltar ao menino de Uppsala. Ingmar foi criado numa casa luterana. O pai Erik um rígido pastor e a mãe Karin uma enfermeira e dona de casa com senso de organização e liderança. Segundo Bergman, ele era um menino chorão que sempre requeria o carinho da mãe. Mas era justamente aquilo que mais gostava o que ele pouco recebia. Karin chegou a levá-lo ao pediatra porque considerava incômodo que ele chorasse demais e sempre quisesse ser abraçado e acariciado. Estamos falando, portanto, de um âmbito inicial de análise: daquela criança e sua mãe numa estrutura familiar dentro da mesma casa, o que configura uma primeira relação de poder – e iria consubstanciar inúmeras construções narrativas psicanalíticas das obras do cineasta por si só.


Analisando mais profundamente Karin, a mãe de Bergman, ele próprio dizia acreditar que ela gostava de poder. Um fato interessante para quem passou a infância e adolescência com a evolução desta mulher nas décadas de 20-30, imediatamente após o final da Primeira Guerra Mundial, período de emancipação para os direitos das mulheres por toda a Europa. E Karin era tida como muito organizada e ativa em sua comunidade, ou seja, falamos agora de outro âmbito de análise, o desta mulher e a relação dela com o seu meio social. Não apenas sua mãe, como outras mulheres fortes com quem Bergman convivia ao crescer, há de exemplo sua avó materna, sua babá e a cozinheira da família, todas consideradas influências recorrentes para ele.


Talvez daí adviesse esta multiplicidade na representação feminina que ele buscava em seus filmes, gerando algumas características notórias de sua carreira: como o uso reiterado das mesmas atrizes, numa interessante inversão de arquétipos psicológicos a cada filme; e ao mesmo tempo o entrelaçamento em relações pessoais e românticas com essas mesmas atrizes na vida real, enevoando e invadindo a fronteira entre fantasia e realidade.


Bergman ia tecendo suas narrativas sempre através dessas memórias afetivas, onde refletia a repressão patriarcal, a culpa e o castigo presentes na sua infância, especialmente diante do regramento religioso paterno entre o certo e o errado, o bem e o mal – dicotomia da qual ele irá se libertar e talvez encontrar na mulher a única referência divina de uma verdadeira força da natureza por qual se guiar. Em seu filme “Fanny e Alexander”, de 1984, num perfeito exemplo direto de representação com este passado, o diretor reflete a infância através de um menino que foi vítima da tirania no ninho familiar.


Mas talvez devamos regressar no tempo para um marco inicial da construção feminina como norteador de seu cinema e de sua repercussão internacional. Um ainda jovem Bergman desafiaria a opressão em 1953 ao criar a figura máxima da mulher libertária em “Monika e o Desejo”. A personagem de Harriet Andersson é primordialmente carnal, colocando a importância da matéria ante o espírito como principal elemento transgressor e libertador. Contrariando a época e a expectativa social do papel maternal, Monika não pertence ao mundo doméstico. Ela tem espírito livre, e, principalmente, não tem culpa (algo advindo em muito da religião, a qual sempre é vista com olhar crítico em seus filmes e bússola psicanalítica crucial para entender suas personagens). Os seus atos refletem a sedução como o seu jeito próprio de viver. Monika é uma aventureira.


Bergman, por sinal, ilustrou essa soberania, essa recusa feroz do julgamento, o imponderável dessa mulher, num dos últimos planos do filme, um dos mais ousados, provavelmente um dos planos que mais marcou a história do cinema: durante mais de vinte e cinco segundos, Harriet Andersson, provocante, olho rutilante, cigarro na mão, sustenta o olhar da câmera, o do espectador, o dos homens, a ponto de parecer lançar para eles um retumbante e mudo “com que direito me julgais?” (BAECQUE, 2011, p. 324)


Porém, esta mulher libertária personalizada nas telonas não era ainda a regra dos cinemas na época, e foi recebida com muitas análises escandalizadas. A relação de poder na conquista deste reconhecimento feminino, historicamente falando, ainda era traçada a partir de um campo de batalha bem mais previsível ao senso comum: a família e o lar. E neste campo Bergman cravou muitas outras obras-primas. Em mais um exemplo dentro de sua filmografia, uma mulher como centro de um processo de degradação familiar será foco de “Através de um Espelho”, de 1961. Harriet Andersson desta vez interpreta Karin, não à toa o nome da mãe do cineasta, que era uma jovem em regresso para a casa do pai, intelectual egoísta, após um tratamento psiquiátrico. Três personagens masculinos estão em torno dela: além do pai, o marido e o irmão. Karin será o fio entre eles, à medida que está entre o mundo real e o da alucinação. Seria o delírio a única forma de se libertar quando a matéria se encontra presa pelas convenções?


O filme fez parte da Trilogia do Silêncio, que falava sobre o silêncio de Deus e a incapacidade de comunicação, e é composta também por “Luz de Inverno” e “O Silêncio”, ambos lançados em 1963. Enquanto aquele tratava mais uma vez de uma figura paterna, religiosa e opressora, desestruturando o centro da família e a mulher no centro disto, este que finaliza a trilogia adentra em um novo referencial para a sua filmografia: a relação das mulheres com elas mesmas, no caso, entre irmãs. A história de “O Silêncio” segue duas irmãs hospedadas num hotel de um país estrangeiro que vivem situações antagônicas. Ester (Ingrid Thulin), doente terminal, reflete traumas sexuais da infância. Anna (Gunnel Lindblom) tem comportamento sexual transgressor e afronta a irmã. Junto com elas, o menino filho de Anna. As duas irmãs estão à deriva, nessa trama freudiana com a constante presença da morte, mais um elemento constante em seus filmes.


Irmãs e morte estão no centro outro de um de seus filmes mais reverenciados, “Gritos e Sussurros”, de 1972. Três irmãs vivem numa mansão do início do século, uma delas muito doente, recebe os cuidados de uma criada. A parceria contínua com a fotografia de Sven Nykvist cria uma atmosfera ímpar para traduzir as imagens do subconsciente de Bergman. O diretor havia sonhado com quatro mulheres de branco numa sala com papel de parede vermelho. Esse sonho é ampliado no filme com as mulheres vagando etéreas, como almas, sempre de branco, num imenso jardim. “Gritos e Sussuros” é uma reprodução da constante presença da morte, através da Agnes de Harriet Andersson. O vermelho dos interiores da mansão é o sangue uterino que sugere vida. A obra estabelece ainda a relação entre essas irmãs e os homens. Numa delas, a Maria, de Liv Ullmann (em papel duplo, ela faz também reprodução da mãe das três personagens), fica diante de um espelho com o amado David (Erland Josephson), numa avaliação do relacionamento, da passagem de tempo e dos traços de egoísmo e indiferença dos dois personagens. Em outro momento, a Karin de Ingrid Thulin, mutila o órgão genital e tem prazer com isso, sangra para punir o marido repressor. Numa representação feminina da Pietá, a imagem de Agnes, nos braços da criada Anna (Kari Sylwan), é o afeto maternal que vem para aliviar a dor da personagem, ao mesmo tempo em que Bergman tangencia o homoerotismo de forma vanguardista como forma de libertação da necessidade da figura masculina no desejo autônomo feminino.


Vale referenciar aqui o estudo do pensador John Berger, na coletânea “Modos de Ver”, que teorizava sobre o poder da imagem da mulher na construção narrativa do cinema: “Os homens olham as mulheres. As mulheres olham a si mesmas sendo olhadas umas pelas outras”. Isto evoca mais uma vez a dúvida clássica se a tradição na arte europeia seria a celebração das mulheres como elas são ou como os homens gostariam que elas fossem? Explica-se este pequeno paradoxo porque a maneira como a mulher foi historicamente representada sempre esteve sob e para o olhar masculino. E a arte de Bergman desafiou os limites entre estas duas fronteiras, mesmo em se tratando de uma figura masculina como diretor de tantas personagens femininas.


Em “Sonata de Outono” (1978) o foco é a relação da pianista de sucesso Charlotte (Ingrid Bergman) e filha Eva (Liv Ullmann). Charlotte priorizou a carreira e a filha vive a frustração e a consciência de que nunca poderá chegar ao nível de perfeição da mãe como instrumentista. A beleza das obras musicais é sufocada pelo sentimento de humilhação diante do fracasso de Eva perante a gloriosa mãe. Mais um sentimento ambíguo dentro da rica obra do diretor no universo feminino.

Outra mãe é determinante no universo feminino de Bergman. Em “Cenas de um Casamento”, de 1973, a advogada Marianne (Liv Ullmann) conversa com uma cliente (Barbro Hiort af Ornäs). Após um casamento de aparente sucesso e filhos adultos, a mulher quer se separar do marido e revela nunca ter amado, nem o marido, nem os filhos. Marianne que vive um tipo de “casamento perfeito” que também vai ruir, fica aterrorizada com o relato da cliente que decide pelo divórcio porque quer buscar sua individualidade. Ela quer finalmente se apaixonar e entender qual é seu papel no mundo. A advogada reflete sobre o desejo de sua cliente e a sua própria vida, num filme que tem como questão central o analfabetismo sentimental da humanidade.


No longa mais psicanalítico de Ingmar Bergman, duas mulheres são espelhos. “Persona”, de 1966, reúne a enfermeira Alma (Bibi Andersson) e a atriz Elisabet (Liv Ullmann). A atriz perdeu a fala numa apresentação de Electra e está num hospital. O noticiário da TV no quarto reflete o mal estar do mundo exterior em conflito. As duas vão para um refúgio numa casa de praia, onde Elisabet vai continuar a recuperação. A mudez contrasta com a vivacidade da enfermeira que fala sobre vários momentos banais de sua vida. A atriz, em silêncio, começa a analisá-la. Alma adota óculos escuros como uma máscara para disfarçar seu caráter, numa tradução yunguiana, de defesa e adaptação. Liv e Bibi têm estruturas de rosto semelhantes que na fotografia de Sven Nykvist entram fusão. Há um enfrentamento entre as duas e as questões maternidade, desejo e individualidade vão entrar novamente em cena. O relacionamento das personagens curiosamente remete à própria relação do diretor com as atrizes. Bergman havia acabado de sair de uma relação com Bibi e começado um namoro com Liv que passaria a ser sua nova musa e com quem teve uma filha.


Karins, Annas, Marias, Almas, Agnes, Elisabetes gravitam nos sonhos do menino Ingmar que desejava o colo da mãe.


Parcerias: Bibi Andersson: 11 Harriet Andersson: 10 Ingrid Thulin: 10 Liv Ullmann: 10 Gunnel Lindlom: 8 Gunnar Björnstrand: 19 Erland Josephson: 15 Max Von Sydow: 11

Livros escritos por Ingmar Bergman: Cinema sueco (1969) Cenas da vida conjugal (1975) Fanny e Alexandre (1983) Lanterna mágica (1988) Filhos de domingo (1995) Lágrimas e suspiros [seguido de] Persona [e de] Dependência (2002)

Filmes preferidos declarados por Bergman: Andrei Rublev, 1966, de Andrei Tarkovsky (russo) O Circo, 1928, de Charles Chaplin (britânico) O Maestro, 1980, de Andrzej Wajda (polonês) Os Anos de Chumbo (“Marianne e Juliane”), 1981, de Margarethe von Trotta (alemã) A Paixão de Joana d'Arc, 1928, de Carl Theodor Dreyer (dinamarquês) A Carruagem Fantasma, 1921, de Victor Sjöström (sueco) Cais das Sombras, 1938, de Marcel Carné (francês) Kvarteret Korpen, 1931, de Bo Widerberg (sueco) Rashomon, 1950, de Akira Kurosawa (japonês) A Estrada da Vida, 1954, de Federico Fellini (italiano) Crepúsculo dos Deuses, 1950, de Billy Wilder (polonês naturalizado americano)

Sobre Bergman e sua referência inescapável, Jean-Luc Godard declarou: "O cinema não é um ofício. É uma arte. Cinema não é um trabalho de equipe. O diretor está só diante de uma página em branco. Para Bergman estar só é se fazer perguntas; filmar é encontrar as respostas. Nada poderia ser mais classicamente romântico". (Jean-Luc Godard, "Bergmanorama", Cahiers du cinéma, Julho – 1958)


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