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BONNIE E CLYDE: UMA RAJADA DE BALAS - Muito mais do que 15 minutos


Warren Beatty e Faye Dunaway

Como Alfred Hitchcock sete anos antes, quando procurava uma solução dramaticamente impactante para a famosa cena do banheiro de “Psicose”, Arthur Penn também recusou a solução padrão para a encenação da violência por meio do sangue. Queria algo muito mais forte do que o mero tremer do corpo atingido por balas, e certamente não uma gota de algo vermelho imóvel. Até porque não seria um ou outro, mas simbolicamente as famosas 187 balas disparadas em rajada que mataram o casal de gângsteres Bonnie Parker e Clyde Barrow em 1934.


O choque para o espectador é enorme ainda hoje, e se tornou um novo padrão para o grafismo visual da violência, com a repetição da técnica das bolhas que explodem sob o figurino, especialmente a partir de “Meu ódio será sua herança”, de Sam Peckinpah. Porém, o filme de Penn atinge seu objetivo não por causa dessa performance técnica, mas porque o diretor concebeu o final para verdadeiramente localizar a origem da violência, sua essência maior.


A câmara lenta, a suspensão da música, o olhar e cumplicidade dos amantes no momento final, em suma, a suavidade, singeleza, ternura que perpassam a cena acentuam o que a violência atinge: a inocência daquele casal que foge da miséria, que busca se amar, que é incompetente e ao mesmo tempo em que faz a escolha decisiva, viver sob suas convicções e não sob o ditame da sociedade. Escolha decisiva para os rebeldes anos 60 e que tornou “Bonnie e Clyde: Uma rajada de balas” um ícone da chamada Nova Hollywood e do movimento contracultura dos Estados Unidos.


As raízes do clássico estão tanto na esclerose da agora Velha Hollywood, com suas grandes produções encalhadas e seus códigos morais envelhecidos, quanto na busca por novas referências, retiradas principalmente da Nouvelle Vague francesa, e na obstinação do jovem ator Warren Beatty em se tornou homem de cinema no pleno sentido da palavra. O que leva o roteiro escrito por David Newman e Robert Benton, inspirado tanto na renovação estética de “Acossado” (1960), quanto no enredo e na melancólica comicidade de “Jules e Jim – Uma mulher para dois” (1962), e ainda nas histórias contadas pelo pai de Benton, que fora ao funeral dos gangsteres reais, às telas, depois passar pelas mãos de François Truffaut, foi a capacidade de Beatty se abrir para o novo momento, sacar os prós e contras do original, barganhar, pressionar, se ajoelhar, negociar e arrancar cada mínimo detalhe do que faria dele um astro definitivo, um ator-produtor no sentido atual e um homem muito rico, ao arrancar um acordo inédito de 40% da bilheteria para si. E não descuidar do filme. Uma história talvez indique sua aguçada sensibilidade àquela altura. Depois de uma primeira recusa de Penn em assumir a direção, com o projeto andando de estúdio em estúdio, Beatty ouviu falar dele por sua namorada na época, Leslie Caron, que indicou Truffaut para dirigir. A conversa com o francês, que recomendou a compra imediata dos direitos e ditou uma nova sequência, a do poema, que está literalmente igual na montagem final.


Beatty foi polindo o projeto, rejeitando o que lhe parecia inadequado, excessivo e distante do tom vindo do roteiro original, que preservou intacto, assim como a liberdade sexual (para os padrões de uma sociedade puritana, bem entendida) e a jovialidade. A maior mexida e a maior intervenção caminharam juntas. Contratou Robert Towne, então um roteirista relativamente obscuro e que conhecera ao convidar Brian G. Hutton para dirigir o filme. Towne fora honesto. Gostara do roteiro original, seu tom novamente, mas faria mudanças aqui e li, algumas das quais agradaram o ator-produtor. Beatty encarregou-o de resolver o problema do ménage a trois. Não queria interpretar um homossexual. Clyde virou impotente e o enredo uma love story de estrada, na tradição de certos filmes de gangsteres anteriores, como “Amarga esperança” (1948), de Nicholas Ray. Towne transformou o filme, portanto, em uma tragédia da eterna juventude transviada. Penn compreendeu isso melhor do que ninguém e encontrou as soluções adequadas. Desde o inconformismo com a mesmice exibida por Bonnie na cena de abertura em seu quarto, particularmente quando soca a grade-prisão da cama, repetindo o famoso gesto de descarga emocional de James Dean na cena da delegacia no clássico raysiano, até a repetição e um tropo recorrente dos anos 60 quando o “sistema” aniquila seus adversários em uma tocais sem rosto, no caso, uma cerca de arbustos de onde saem os tiros.


“Uma rajada de balas” é um filme complexo e ultrapassa leituras fáceis, com base em freudismos e sartreanismos. Não é uma elegia ao joie de vivre – Bonnie atira para fora do carro sem dó nem piedade a personagem de Gene Wilder quando ela se posiciona assim. Sabe que vida é dolorosa, cruel, injusta, rápida com a rajada. Tempus fugit. A morte ronda os amantes e lançar o amor ao tempo futuro, como Tristão e Isolda, é tarefa árdua. Na balada poética de sua fugaz biografia a dois ela deixa claro isso. A solução, ainda imberbe nos anos 30, explodindo nos 60 e absolutamente corriqueira nos tempos atuais, está na máxima warholiana: escapar ao vaticínio. Mas sem a ironia, pois se trata de imortalizar o impulso que uniu os dois seres, profundamente enraizado quando se escolhe o caminho do crime, como nos demonstra o brilhante “Inimigos públicos” (2009), de Michael Mann, fazendo ecoar a história como lenda e como poesia. Apreendendo o que importa, deixando claro o patético à volta. E nada disso teria sido possível sem as performances à la Jeanne Moureau, e à la Belmondo do par Faye Dunaway-Warren Beatty. Sobretudo ela, que sai sem lenço e sem documento, sem calcinha e sutiã para a aventura de se apaixonar, e devolve a cada momento a mistura de melancolia, vivavidade, raiva, tesão e paixão.


Como “A primeira noite de um homem” (1967) e “Sem destino” (1969), os dois outros filmes fundadores da Nova Hollywood, “Uma rajada de balas” não vê futuro algum em todo aquele turbilhão de protestos, barricadas, amor livre, rock and roll e juventude passageira. Mas diferentemente dos outros dois não associa a melancolia ao desdobrar inevitável da história. E nisso foge do aparente vaticínio geracional indicado por No instante agora, de Moreira Salles. O problema não é a época, intensa certamente, mas a condição humana desde sempre, em seu confronto com o mundo. Bonnie e Clyde, verdadeiros e ficcionais, não são intelectuais, mas pessoas pobres, semiletradas, caipiras, ingênuas, acossadas, e em por isso menos trágica.



Mostra Warren Beatty – Uma Rajada de Charme

De 25 a 31 de março na Cinemateca do MAM

26/3 – terça-feira - 18h Bonnie e Clyde: Uma rajada de balas (Bonnie and Clyde), de Arthur Penn (EUA, 1967). Com Warren Beatty, Faye Dunaway, Michael J. Pollard, Gene Hackman.

Ação/Biografia. Sinopse: Bonnie Parker se apaixona por um ex-presidiário, Clyde Barrow, e decide acompanhá-lo. Juntos, iniciam uma carreira de crimes roubando carros e assaltando bancos até serem perseguidos pela polícia por todo o país. Indicado a 10 Oscars, incluindo melhor filme, venceu dois: atriz coadjuvante (Estelle Parsons) e fotografia (Burnett Guffey). Warren Beatty foi indicado a melhor ator. 111 min. 14 anos.


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