Sonhadores, Os (The Dreamers), de Bernardo Bertolucci (França/Reino Unido/Itália)
Por Carlos Augusto Brandão
Bertolucci é um dos diretores mais controversos - e contraditórios - do cinema atual. Capaz de trazer para o espectador obras primas inesquecíveis e importantes para a história do cinema como "O Último Tango em Paris", "O Conformista" e "1900", consegue cometer erros piramidais como "O Último Imperador", "O Pequeno Buda" e "Beleza Roubada". Há quem suponha que essa inconstância tem origem no imaginário sem freios, exacerbadamente poético, desse grande mestre italiano, um dos últimos dinossauros do maravilhoso cinema italiano que nos encantou desde os anos 40 até os 70.
Mas também é possível, justamente por suas visões delirantes - somadas à aguda visão sócio-política e a uma capacidade de introspecção raras - que a análise histórica, o conteúdo ideológico e psicológico dos melhores momentos da cinematografia de Bernardo Bertolucci sejam tão profundos e complexos.
Foi em 1998, depois daquela série de erros começada em 1987 com "O Último Imperador", que Bernardo deu sinais de vida e de brilho, mesmo que intermitente, com "Assédio", um filme que apesar de ter sido feito para a televisão, estava bem mais próximo do que sempre esperávamos sair do baú de poesia, sensualidade e humanismo de Bertolucci. Pois foi com seu mais recente trabalho, Os Sonhadores (The Dreamers, 2003), que o bom e velho parmiggiano ressurge com sua clara e inconfundível assinatura.
Como no poderoso "1900" e no perturbador "O Conformista", lá está de volta a discussão de questões históricas; como no "Último Tango", ressurge o desejo como inspiração da criação, a transgressão como alimento e fonte para a busca da libertação. O impulso inconsciente do incesto ressurge, como no sombrio "La Luna". Ao lado do trio amoroso, vemos brincadeiras juvenis onde são discutidas questões ligadas à cultura, arte, cinema, política e à vida pessoal. Cenas e diálogos de filmes de Bresson, Fuller, Godard, Von Sternberg são citados a todo instante ao som de Jimmy Hendrix e The Doors.
Eventualmente, os sonhos dos personagens são quebrados e o mundo lá de fora entra insidiosamente pelas trincas. Mas Bertolucci segue com seu filme, a construir uma teia que nos transporta e nos prende num universo onde se permite reavaliar o passado e ver o presente sob nova luz. Os Sonhadores nos leva a muitas leituras, que podem estar no desejo libertário dos três jovens, expresso através das intensas cenas de sexo ou nos sonhos desfeitos de algo que não mudou apesar de todos os sonhos de uma geração e hoje nos chegam globalizados e desprovidos de qualquer ideologia. Mas pode estar também na vontade, e na crença do veterano e ainda sonhador Bertolucci, de reabrir um debate em torno do legado de uma geração que acreditava na Revolução e para reiterar que as utopias não morreram. E que o sonho de mudar velhas estruturas ainda é possível.
Bernardo Bertolucci vive. Ganhamos nós e o cinema.