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Vou Para Casa (Je rentre à la maison), Manoel de Oliveira (França/Portugal)

Por Daniel Schenker Wajnberg

Em Vou para Casa (Je rentre à la maison, 2001), o diretor Manoel de Oliveira utiliza bastante o recurso da voz em off. O objetivo: mostrar como algo que está sendo dito pode repercutir em quem está ouvindo (um determinado personagem, não localizado no foco central, ou o próprio espectador). Logo no começo, Gilbert Valence (Michel Piccoli), ator de carreira bastante respeitada, surge em cena interpretando um personagem de O Rei está Morrendo - e o texto de Ionesco forma uma espessura com um outro texto (não-dito, mas cuja gravidade é evidenciada pela movimentação na coxia). Logo o ocorrido é esclarecido: Gilbert acaba de perder a esposa, a filha e o genro num acidente de carro.

Sua reação à tragédia não é explicitada. Manoel de Oliveira pula um pouco no tempo, de modo a fazer com que o público reencontre o ator trabalhando - em A Tempestade. Ainda que as montagens das obras de Ionesco e de Shakespeare pareçam um tanto antiquadas, o que importa para Manoel de Oliveira é a figura do ator e, principalmente, a presença concreta da voz. Em determinado momento de "A Tempestade", Michel Piccoli atinge um nível elevado de naturalidade construída (e não é justamente isto que atesta a jovialidade do cinema de Manoel de Oliveira?). É a contaminação sublime entre pessoa e personagem - sendo que, neste caso, a pessoa (o ator) já é um personagem interpretado por Piccoli (mas sem os artifícios da representação). Um pouco adiante, Manoel de Oliveira filma boa parte de uma conversa entre o ator e o seu produtor, mas flagrando apenas a movimentação dos pés. O cineasta reafirma a idéia inicial: o importante é ressaltar o reflexo físico daquilo que se diz.

Vou para Casa trai esta forma indireta, mas extremamente penetrante, de revelar o oculto quando adere à facilidade do discurso. Oliveira cria uma situação, na qual Gilbert é convidado a participar de um telefilme comercial e recusa afirmando sua resistência em ceder ao chamariz econômico. A fala é justa e essencial numa época, como a atual, em que se assiste ao desprezo em relação não só ao valor artístico como a tudo o que exclui um interessante retorno financeiro. No entanto, contradizendo um pouco seu protagonista, o diretor acaba cedendo a um recurso mais óbvio, que dispensa a sutileza em prol da mensagem.

O tom crítico é mantido na parte final, concentrada no envolvimento de Gilbert com a filmagem de Ulysses, de Joyce. Mas o que está em questão não é apenas o fato de o ator ser sempre interrompido por um diretor (interpretado por John Malkovich, que, assim como Catherine Deneuve, retoma parceria com Manoel de Oliveira depois de "O Convento") para corrigir sua pronúncia do inglês e sim a evidência do esgotamento físico e psíquico de um homem que ainda não teve tempo suficiente para elaborar perdas trágicas.

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